Cousa: Schfrütz

Eis aqui um blog em que um ser propõe um título a ser preenchido pelo outro ser.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Marola


Depois de um dia impossivelmente longo de trabalho irrelevante e cansativo, ele voltava reconstruindo nos labirintos de sua mente o labiríntico caminho para sua casa, um amontoado de direções que se traduziam em ruas ruelas escadarias passarelas pontes etc. Todo dia há um tanto tempo fora assim, e parecia que assim seria por um tanto tempo mais, e isso surpreendentemente, ou talvez não, despertava nele nenhum tipo de tédio ódio marasmo raiva inquietação etc. Indiferença. Conveniente, rotineira indiferença. E sem sequer pensar nisso ia fazendo pela cidade cinza seu caminho cinza rotineiro indiferente cotidiano eterno etc. Talvez esse caminho labiríntico fosse a única certeza de sua vida irrelevante e cansativa.

Depois de um dia cansativamente irrelevante de trabalho longo e impossível, ele voltava reconstruindo nos caminhos de sua mente o labiríntico labirinto para sua casa, um amontoado de direções que sem a menor explicação razão porquê causa sentido etc. se misturaram, confundiram, e ele se perdeu, assim como sua certeza. A cidade era igualmente cinza, as ruas igualmente sóbrias, mas sua indiferença agora se tornava angústia medo raiva desalento desespero etc. Tentou refazer seus passos, mas não conseguiu, e começou a andar a esmo, esperando que seu labiríntico caminho aparecesse dentre os incontáveis caminhos que ele agora traçava.

Depois de uma noite longamente impossível de deriva cansativa e relevante, ele decidira conscientemente, ou talvez não, andar somente em linha reta, certo de que isso o levaria de volta ao seu caminho ou a algum lugar conhecido. Estava impressionado com o sol do meio-dia, que ele não via há um tanto tempo, sol forte estranho quente incômodo poderoso etc. Caminhou até chegar ao cais do porto, onde por razões óbvias teve de parar de caminhar. O sítio não era de todo estranho, lembrava agora que o havia visitado há um tanto tempo em sua infância, uma memória enterrada nos labirínticos caminhos de sua mente, mas uma memória reconfortante. O oceano verde azul inquieto imenso eterno etc. era uma das coisas mais lindas que já vira, mas sem sequer pensar nisso, resolveu que o mar era apenas mais um obstáculo no caminho de seu caminho, e convicto a continuar seguindo em linha reta, logo achou um bote a remo por ali guardado e não hesitou em colocá-lo na água e começar a remar.

Depois de dois dias impossivelmente longos de trabalho incessante e cansativo, ele repousava no fundo do barco, olhos semicerrados, corpo tomado pelo cansaço estafa exaustão esgotamento lassidão etc. Acima, um céu anormalmente estrelado. Tentava reconstruir nos caminhos labirínticos de sua mente o amontoado de direções que o acabaram por desviar de seu labiríntico caminho, e sem sucesso por fim desistiu. Sua atenção foi se desviando vagarosamente para o balanço do barco, para as marolas que causavam tal balanço. Cada uma das marolas, concluiu, era um caminho. Um caminho quase insignificante, um caminho que não leva a lugar algum, que apenas levanta o barco alguns centímetros e o traz de volta. Mas era um caminho simples harmonioso sutil natural reconfortante etc. Concluiu que talvez fosse esse o caminho que realmente estava procurando. E pensando nisso relaxou, pronto, ou talvez não, para seguir esses pequenos caminhos até o fim de sua vida. Eles eram sua nova certeza.

Depois de sabe-se lá quantos dias, que passaram desapercebidos, ele acordava. O quarto branco tinha um cheiro forte artificial etéreo estéril estranho etc. Calculou logo que estava num hospital, e que alguém o deveria ter encontrado. Lhe informaram que estava se recuperando bem, e que poderia ir para casa logo. Enquanto esperava, pôs-se a pensar em como havia perdido seu caminho e encontrado outro, mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão iluminadora, parecia não haver nenhum propósito desígnio escopo finalidade tenção etc. nos acontecimentos que se passaram. Mas nunca mais deixaria de pensar nisso.

Depois de dois dias infinitamente tediosos de marasmo incessante e monótono, ele voltava do hospital reconstruindo nos labirintos de sua mente o labiríntico caminho para sua casa, um amontoado de direções que se traduziam em ruas ruelas escadarias passarelas pontes etc. Talvez nunca mais esquecesse esse caminho, mas isso não mais fazia dele uma certeza. Nunca mais conseguiu dormir sem sentir as marolas que o embalaram aquela noite, mas não pensava nelas conscientemente. E todos os dias doravante, quando voltava do trabalho, talvez houvesse escondido em algum canto dos labirintos de sua mente um desejo delírio impulso talante líbito etc. de novamente se perder e se entregar às marolas que por um momento deram sentido à sua vida, ou talvez não.

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Obs. 1: Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé.

Obs. 2: Não vou dar o nome do próximo texto ainda porque preciso resolver umas coisas com a outra nobre integrante desse brog. Antes de tentar qualquer coisa nova, acho que preciso recuperar um pouco de ritmo... Então vou sugerir um título, e depois a gente vê o que faz. O próximo texto deverá se chamar "O Encontro".

É só.