Cousa: Schfrütz

Eis aqui um blog em que um ser propõe um título a ser preenchido pelo outro ser.

segunda-feira, março 21, 2005

Cinqüenta Centavos



Uma rosa em cada têmpora, presas a um elástico que circundava equatiorialmente seu crânio e terminava num laço de longas pontas que se misturavam aos cabelos sujos. Um casaco feito de tiras de tecido de todas as cores e em todas as estampas imagináveis cobria-lhe a parte superior do corpo, ainda que quase sempre se pudesse ver, pelas lacunas do trançado ou devido a uma movimentação excessiva que lhe era peculiar e que fazia com que as roupas nunca estivessem no lugar, trechos de uma pele encardida, quase cinza. Calças cortadas em tiras dos tornozelos até os joelhos, uma moeda furada amarrada numa tira de tecido como colar, pés no chão e uma grande bolsa de mulher toda ornamentada por tiras de tecido que pareciam fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim. No rosto, um sorriso sem dentes estava sempre estampado, e as marcas de expressão ao redor dos olhos eram tão profundas que provavelmente se rasgariam e delas sairia um sangue muito vermelho caso aquele sorriso fosse trocado por qualquer outra expressão.

Movimentava-se como um mestre de cerimônias. Dançava no meio da rua enquanto cantava músicas que ninguém conhecia e que tinham ritmos e melodias cuja lógica escapava aos ouvidos de todos que, propositalmente ou só de passagem, assistiam ao seu espetáculo. Batia os calcanhares no chão e dava saltos surpreendentes, girava com braços e olhos muito abertos e as fitas da sua bolsa enrolavam-se no seu corpo, encolhia-se subitamente e no momento seguinte saltava como um dançarino de frevo, como um dançarino de frevo que acabara de acordar, como se todo dançarino de frevo acordasse com um salto, agarrasse um pequeno guarda-chuva colorido que surgisse inexplicavelmente e fosse, saltando e girando, enfrentar o dia.

Atrapalhava o trânsito, mas nunca havia sido atropelado e raramente era insultado. Sempre que uma cabeça se projetava para fora de uma janela de carro e, acompanhada por uma buzina, xingava-o de louco, bêbado, louco bêbado, ele parava na frente do carro, desculpava-se com uma reverência e, com um golpe de calcanhar, saía da frente do veículo e apontava com todo seu corpo, muito curvado para a frente, a diração a ser seguida, repetindo sempre: "abre-alas, minha gente!, abre-alas!". E recomeçava a dança.

Morava num ponto de ônibus, para onde ia quando se cansava de seu espetáculo. Lá, recebia as visitas quase que diárias dos moradores da região, que lhe traziam água, comida e, por vezes, cobertores ou roupas. As roupas ele cortava em tiras e guardava num saco. Também passavam por lá pessoas dispostas a dar-lhe dinheiro, dinheiro esse que o Homem das Rosas, como era conhecido, usava principalmente para, duas ou três vezes por semana, ir a uma floricultura e comprar duas novas rosas para seu adorno. As antigas, guardava-as na bolsa, enfiadas desajeitadamente entre as páginas de um livro grosso.

O Homem das Rosas era um dos assuntos preferidos dos freqüentradores de um bar bem em frente ao ponto de ônibus em que morava. As conversas sobre ele nunca chegavam a lugar nenhum e geralmente cediam lugar a outros assuntos, mas ainda assim eram raras as noites em que ninguém, entre uma dose e outra, se lembrava do insólito morador do ponto de ônibus. Inácio, que havia se mudado recentemente para aquelas bandas, logo percebeu isso e procurou se informar a respeito.

- É um louco, só isso! - dizia Alfredo, um homem gordo e enfezado que estava ao lado de Inácio, no balcão. - Freqüento este lugar há doze anos e há doze anos vejo o Homem das Rosas fazendo sempre a mesma coisa: as roupas, as dancinhas, o sorriso desdentado.

- É também o que eu penso! - acrescentou Alan, um homem bem-vestido que estava ao seu lado. Intelectual que se interessava profundamente pelo que chamava de "a podridão humana", freqüentava aquele lugar que chamava de "a espelunca" sem o conhecimento de ninguém de seu círculo social. - Eu já pensei que ele fosse mais, sabe? Mais do que isso. Que mais dia, menos dia, ele ia entrar aqui, subir numa mesa e fazer um discurso, revelar o sentido da vida ou algo assim. Ou que pelo menos houvesse algo nele, ou algum traço do comportamento dele, que explicasse o todo, e que fosse uma dessas explicações desencadeadoras, que te fazem fugir do país, deixar a esposa, dar um tiro nos miolos ou adotar um cachorro, sabe? Uma coisa que fosse, assim, quase que uma epifania. Eu tive essa esperança durante muito tempo. Queria escrever um livro sobre isso, sabe? "O Homem das Rosas". Só pela diversão de ver meu livro sendo confundido com o do Umberto Eco. Mas que nada... há anos venho aqui e há anos é a mesma coisa. Chega a ser entediante, entediante, entediante... - e foi afundando o rosto num copo de cerveja.

Inácio tragou seu cigarro enquanto olhava para o Homem das Rosas, que dormia no ponto de ônibus com aquele sorriso no rosto. Sua contemplação foi interrompida por uma voz de mulher, coisa rara naquele lugar.

- Ele só está esperando.

Todos voltaram os olhos para Tina, uma mulher de meia-idade, meio acabada, coberta por maquiagem barata, perfume doce e roupas desconjuntadas. Ela segurava o cigarro no meio de dedos ossudos com unhas muito compridas pintadas de um vermelho vivo e soltava a fumaça para cima, com os olhos semicerrados e as pernas, assustadoramente finas, cruzadas.

- Esperando o quê, mulher? - perguntou Alfredo, impaciente.

- Esperando ter dinheiro suficiente para comprar uma furadeira com uma... broca, né? É. Uma broca especial, sei lá.

Cercada por olhares que pediam explicações, Tina se viu obrigada a continuar.

- Ué, anos e anos ouvindo vocês falarem dele! Fui lá conversar, né? Foi meio difícil de entender; além de não ter um dente na boca, o cara não fala coisa com coisa.

- Louco... - acrescentou Alfredo. Tina apontou para ele e fechou os olhos enquanto dava um gole na sua bebida, como que em sinal de concordância.

- De pedra, Alfredo. De pedra. Mas enfim, resumo da ópera: pelo que eu entendi, alguém - algum outro louco, provavelmente - deu pra ele uma moeda de um real com um furo, aquela que ele usa no pescoço e acha a coisa mais linda. Aí, já que ele acha a coisa mais linda, ele separa as moedas que ganha de esmola: umas pra comprar essa furadeira especial e outras pra furar quando ele já tiver a furadeira, que ele quer fazer colar de moeda. E ele me disse que já tem quase todo o dinheiro e me fez prometer que ia na loja comprar a furadeira pra ele, porque chutam ele pra fora das lojas, né?

- E você prometeu? - perguntou Alan, divertindo-se com aquela história que de certa forma reavivava suas esperanças quanto ao livro.

- Ué, gente! Prometi. Dizer não pro louco? Tá louco... além do mais, que é que eu tenho de mais importante pra fazer?

Naquele momento todos se viram segurando cigarros, cervejas e pingas com os cotovelos sobre um balcão ensebado e compreenderam Tina, que já estava observando as curvas que a fumaça do seu cigarro fazia no ar parado do bar. Algumas doses e piadas depois e todos voltaram para as suas casas, sem deixar de lançar um olhar renovado para o Homem das Rosas que dormia e sonhava com sabe-se lá o quê naquele ponto de ônibus.

Os quatro só se reuniram novamente no bar uma semana depois. Tina foi a última a chegar e, sem nem dizer boa-noite, começou a relatar o dia anterior.

- Logo cedo, gente, logo cedo - me vê uma pinga? -, passei pelo ponto e o louco me estendeu um saco cheio de notas e moedas. Aí, né, eu fui até aquela loja de material de construção, três quadras passando o mercado, sabem? Então. Morta de vergonha, né? Com aquele saco ridículo. Bom, entrei e achei a droga da furadeira, o vendedor me olhando com aquela cara, vocês imaginam, né? Sendo que eu não tinha dormido. Ressaca ressaca ressaca... - deu um gole na pinga enquanto fazia um gesto pedindo a pausa. - Bom, o caixa pegou e foi contando o dinheiro, e eu lá, naquela situação, gente. Imagina. Faltou dinheiro, né? Uns cinco reais, que eu paguei, porque eu não ia fazer o moço contar tudo aquilo e aí falar que não ia levar, mas enfim. Peguei o pacote, pesava pra diabo. E a subida, né. Mas eu agüentei, tanto que tô aqui, e levei lá pro Homem das Rosas. Gente: vocês não imaginam a felicidade do louco. Me pegou no colo, me fez dançar com ele, imagina!

- The happening of a lifetime... - disse Alan, baixinho, quase que pra si mesmo. Tina deu mais um gole na bebida.

- E aí eu sentei lá no ponto enquanto ele abria o negócio. Depois ele me arrastou até a casa daquele velho que gosta dele, ou tem dó, sei lá. Entramos, ele ligou a coisa na tomada e começou a furar as moedas. Ele me deu um saco cheio de tiras de tecido, que fediam pra caramba, e me pediu pra enfiar uma fita em cada moeda, pra fazer os colares, né? E eu fiz.

Tina virou o resto da pinga enquanto os outros esperavam ansiosamente.

- Cinco horas! - disse ela, limpando os lábios e borrando um pouco o batom. - Cinco horas! Era tanta moeda, gente, que levou cinco horas pra fazer os colares.

Todos se entreolhavam enquanto Tina acendia um cigarro e cruzava as pernas finas. Quando o silêncio se estendeu por mais tempo do que Alfredo podia suportar, ele bateu de leve no balcão, demonstrando alguma irritação, e disse:

- E aí, Tina? E aí?

Tina olhou surpresa pros três.

- Ué, gente. E aí nada, né? Ele foi pro ponto e tá dormindo até agora, ó lá.

- Ah, que grande bobagem! - berrou Alfredo, batendo mais forte no balcão.

- E a epifania, mulher? Cadê a minha epifania? - vociferava Alan, como quem tem os sonhos arruinados.

- Ué, gente! Ué...

Enquanto Tina se justificava, Inácio se afastou da discussão e olhou para o Homem das Rosas, que dormia no ponto. Talvez fosse o suficiente. O que aquilo revelava? Nada, e talvez fosse essa a grande revelação. Se a alegria daquele louco que dormia era ter um saco de colares de moeda naquela bolsa de mulher, o problema era dele. Aliás, nem era um problema. Esperar que aquilo tudo terminasse com uma epifania, como queria Alan, era inocente da parte deles. Ou egoísta, talvez. O Homem das Rosas sempre estivera alheio àquilo tudo - louco, afinal. Crer num propósito superior para as manias daquele louco chegava a ser ridículo. Era buscar no Homem das Rosas alguma explicação pré-fabricada para alguma questão não-formulada. Uma epifania, minha gente? Que é isso... que busca é essa? Inácio olhava para Tina, Alfredo e Alan e só conseguia ver pedaços de pessoas que buscavam no Homem das Rosas alguma emoção, alguma explicação, uma epifania. E ele próprio tivera esperanças de que algo revigorante - desencadeador, como dissera Alan - pudesse sair daquilo tudo. Sentia vergonha, sentia-se um pedaço de pessoa fumando e bebendo naquele bar. O que mais fazer, no entanto? A noite nunca foi uma criança...

Neste momento, em que Tina já havia se irritado com Alan e Alfredo e apontava uns dedos ossudos para os narizes dos dois, em que Alfredo estava a ponto de virar um tapa na cara cheia de pó daquela mulher, em que Alan começava a perceber o ridículo daquilo tudo, em que Inácio já se perdera em pensamentos e em que o dono do bar começava a se preocupar com o tumulto, uma música cuja lógica escapava aos ouvidos de todos fez com que o silêncio se instalasse de súbito no local. Todos olharam para a porta do bar e viram o Homem das Rosas adentrar o recinto com aquela movimentação de mestre de cerimônias, batendo os calcanhares no chão e girando. Ele trazia nas mãos os colares de moeda.

Ninguém pôde se mover enquanto o Homem das Rosas dançava e colocava um colar no pescoço de cada um que estava ali. Os olhos de Alan brilhavam, premeditando a epifania. O Homem das Rosas executava passos rápidos e leves, que prendiam o olhar de todos. Os colares foram sendo distribuídos, um a um, e ninguém pôde repelir aquele louco que colocava uma tira de tecido encardido em volta de todo pescoço que via. Tina foi a última a receber o seu e teria sido possível notar um rubor no seu rosto - apesar de todo aquele pó - quando o Homem das Rosas deu-lhe também uma de suas rosas, colocando-a por entre o emaranhado dos seus cabelos antes de dar meia-volta e sair dançando do bar, não sem antes agradecer a todos com uma grande reverência. Teria sido possível, mas todos estavam ocupados demais constatando que, em todos os colares, reluzia uma moeda de cinqüenta centavos, enquanto que o agora Homem da Rosa trazia junto ao peito uma moeda muito suja de um real.

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Zu, vamos manter esse negócio? Eu adoro esse negócio. Esse negócio me faz bem.

O próximo texto deve se chamar "Marola".

sábado, março 19, 2005

Piano Velho


Francisco nunca soube exatamente porque escolhera aquele piano. Estava desafinado, quebrado e o som não era exatamente excepcional. O vendedor sequer sabia dizer quem era o fabricante, mas não desistiu antes de uma minuciosa busca no interior e no exterior do instrumento, por um nome ou alguma informação. Nada achou, e já esboçava um pedido de desculpas quando Francisco, que já havia se decidido há muito tempo – mas ainda estava tentando segurar o riso devido aos malabarismos executados pelo vendedor em sua busca – interrompeu e fez a compra, por um preço bastante justo.

Depois de colocar o enorme piano na sala de estar, Francisco percebeu que mais peças haviam se quebrado no transporte. Imediatamente ligou para um amigo de longa data: Michelli, um velho italiano que por acaso era um ótimo afinador. Para a surpresa de Francisco, Michelli também parecia fascinado ao observar o antigo instrumento, e isso o convenceu de que realmente havia algo de incomum, talvez especial, nesse piano. Os dois trabalharam com afinco, reconstruindo cada peça, cada mecanismo quebrado, e o resultado foi muito mais do que satisfatório.

Francisco estava muito feliz, finalmente tinha um piano somente para ele. Sempre tocara, um excelente músico, mas nunca pôde dedicar-se tanto quanto queria à musica. Ter o instrumento em casa sempre fora seu sonho. Logo começou a compor: o fazia de madrugada. Afinal a madrugada é fresca e silenciosa, e o músico não via hora melhor para se ter o máximo possível de concentração. Então, de madrugada, Francisco sentava-se diante do piano, tocava algo para se aquecer – freqüentemente Bach – e logo emendava em trechos originais, escrevendo-os o mais rapidamente possível. E assim seguia até a manhã. Só deitava-se ao primeiro pio do sabiá de peito amarelo que vivia na árvore em frente a sua janela – e cujo canto já sabia de cor.

Certa feita, ao ligar para a casa de Michelli, Francisco teve uma surpresa. Queria uma afinação de rotina, mas ficou um tanto chocado com a notícia de que o velho amigo havia se aposentado. Mandaria de muito bom grado sua filha Nina para fazer o serviço. Ao contrário do que o músico esperava, a garota executou o trabalho com perfeição. E o fascínio do rapaz estava agora dividido entre o grande piano e a garota, tão formosa e tão hábil.

Inexplicavelmente, o velho piano parecia precisar ser afinado cada vez mais freqüentemente. O que parecia não ter fundamentos, pois sempre que Nina abria o instrumento, ela apertava algumas porcas, sorria e dizia que não havia nada de errado. Francisco sempre inventava uma desculpa para chamar Nina, e esta sempre inventava algo para ir à casa dele. Não cabem aqui os pormenores dessa pequena parte de nossa história, então pulemos alguns meses para frente, mais ou menos um mês após o casamento.

A vida começou a ficar difícil. Afinal, não é e nunca foi fácil para um pianista e uma afinadora sustentar uma casa e uma família. Por um lado era bom que não tivessem filhos. Nina ia trabalhar cedo todo dia e voltava à noite. Francisco dava aulas de piano até a noite e mais tarde ia tocar em bares e restaurantes. Quando por acaso se viam, Nina cantava acompanhada por Francisco, alguma ária de Villa-Lobos ou mesmo de Mozart. E as obras começadas do agora não tão jovem músico repousavam na estante da sala de estar, ao lado do piano. O famoso piano do professor Francisco.

O professor, como passou a ser conhecido na vizinhança, era muito querido (e disputado) por seus alunos, e vice e versa. Mas embora negasse, tinha um carinho especial por uma de suas pupilas, Júlia. Por dois motivos: sua incrível e crescente habilidade com o instrumento, e por lembrar Nina, na aparência, no jeito de falar. Talvez ela fosse a filha que nunca tiveram. E nenhum outro aluno lidava com o piano como Júlia, tão precisa e delicada ao mesmo tempo.

O velho piano de Francisco e Nina com certeza contribuía para o sucesso do professor. O instrumento adquiriu fama no bairro. Fazia a razoavelmente espaçosa sala de estar da residência parecer minúscula, ostentando sua imponente cauda inteira e atraindo imediatamente o olhar dos visitantes, freqüentes ou não. Francisco se divertia um tanto com isso, mas nunca deixara de admitir que havia algo naquele piano enorme. A sensação de correr os dedos por suas antigas teclas de ébano e marfim, marcadas pelo tempo, era inexplicável, quase prazerosa, e Francisco podia ver que seus alunos sentiam o mesmo.

O piano viu o tempo passar, e viu o casal envelhecer. Francisco e Nina já pensavam na aposentadoria, mas tinham medo de discuti-la. Eram apaixonados por seus trabalhos, e Francisco tinha seus alunos. Foi então que o inesperado aconteceu. Nina resistiu ao primeiro derrame, mas não ao segundo, apenas uma semana depois. Júlia, agora com seus vinte anos, foi quem ajudou Francisco e lhe deu muito da força de que precisou para passar por essa dura fase. Francisco sofria por Nina e pelos filhos que nunca tiveram, mas seus alunos – principalmente Júlia – mais do que o apoiaram: sofreram com ele.

Em casa, o Francisco não conseguia dormir. Só lhe faziam companhia o piano e o sabiá de peito amarelo. Será que era o mesmo? Francisco logo se lembrou do canto do passarinho, e das longas noites de criação da sua juventude. Quem sabe se para amenizar sua dor, esquecer um pouco de Nina, foi à estante e apanhou uma de suas obras inacabadas.

Sentou-se ao piano, abriu a partitura e ensaiou alguns acordes. Imediatamente percebeu o quanto sentia falta de tocar por horas a fio alternando trechos de Bach, Bartok, Satie, Villa-Lobos, Gershwin e até Ellington com seus próprios. Ao dedilhar o velho teclado, percebeu também que muito do que fora sua vida girou em torno daquele instrumento: Nina, o casamento, as aulas, os alunos, Júlia... E resolveu dedicar-se novamente ao piano, à música, como havia se dedicado por tanto tempo a Nina. Terminar o que havia começado seria, talvez, uma maneira de honrar aquilo que tivera com Nina, com a própria música e com o piano.

E foi assim que novas notas voltaram a preencher os velhos pentagramas nos cadernos amarelados do velho professor. Novamente a música ecoava na casa vazia durante as madrugadas, até o sabiá cantar. Francisco dormia de manhã, reservando a tarde para seus tantos alunos. Apesar de ter cogitado se aposentar, os alunos eram agora uma parte maior da vida dele. Gostava de ensinar e gostava da companhia. E nessa rotina incomum os dias se passavam.

Muitos se passaram quando Francisco, já bastante velho, decidiu deixar tudo que tinha para Júlia: a casa, a partitura, o piano... Júlia se tornara uma grande pianista, mas nunca esquecera de seu mestre, a quem sempre agradecia antes de toda apresentação. “Agradeço ao meu professor Francisco e ao seu velho piano”, dizia ela. E sempre que podia visitava o professor, que a recebia com alegria e orgulho. Estava cada vez mais parecida com Nina.

Certo dia, Júlia resolveu fazer uma visita surpresa a Francisco, já que estava num raro período entre turnês. Como sempre era bem-vinda, bateu na porta, anunciou-se e entrou. Francisco estava no andar de cima, e não viu quando Júlia notou a partitura aberta no velho piano e sentou-se para ver o que era. Tocou as primeiras notas da melodia, e logo encadeou o acompanhamento. Francisco, que descia a escada, demorou a perceber que linda canção era aquela que Júlia interpretava ao piano.

Finalmente percebeu: era sua última obra, “Nina”. Percebeu também que nunca havia ouvido alguém tocar uma de suas músicas. O som forte, quente e um pouco desafinado do piano velho trouxe todas as lembranças de volta à sua cabeça: as madrugadas criativas, Nina, seus alunos, Júlia... O aperto que sentia no peito virou dor. Desceu mais alguns degraus, até poder ver Júlia na sala de estar, onde tocava compenetrada, mas com um sorriso no rosto. Parecia que Nina tinha voltado e alegremente dedilhava o piano.

Francisco sabia que era impossível, mas parecia ouvir a voz de Nina improvisando sobre o tema da sua canção. A dor piorou, ele levou a mão ao peito e sentou-se. Fechou os olhos, aproveitando ao máximo aquela linda melodia que vinha do velho piano. A música ia chegando ao fim, e a dor no peito do velho professor foi sumindo junto ao rallentando das últimas notas. Olhou mais uma vez para Júlia, sorriu, e deu seu último suspiro enquanto ela dava o último acorde de sua obra.

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Bom, como vocês podem ver, voltei. O texto aí em cima ficou um pouco longo, talvez um pouco confuso e eu acho que poderia ter mais a ver com o título. Também poderia melhorar a linguagem, mas não é de todo ruim. Ainda vou trabalhar nesse piano aí. Enfim, para continuar esse espírito de "começar de novo", quero que o próximo texto se chame "Cinqüenta Centavos". Essa só a Luiza entendeu.

UPDATE (12/09/05): Nada como um pouco (um pouco?) de distância cronólogica para reavaliar a própria produção literária. No caso desse texto, acho incrível como ele se encaixa no que falei aqui. Eu não gostei desse texto. Acho até chato de ler, em algumas partes. Não consegui encontrar soluções para os problemas que propus e simplesmente as tirei da cartola.

Eu sei que a pior crítica literária é aquela feita pelo próprio autor, então não vou dizer que o texto está ruim, mas sim que poderia estar muito melhor. Tudo o que peço é que não me julguem por ele.