Cousa: Schfrütz

Eis aqui um blog em que um ser propõe um título a ser preenchido pelo outro ser.

quinta-feira, julho 15, 2004

O Japonês


Aldemir Martins


Thiago havia acabado de levar um pé de sua namorada, companheira de muitos anos. Estava lá, sentado numa poltrona torta da sala da casa dele, agora meio vazia por causa da parcela daquilo que compartilhavam que havia sido por ela levado. E era exatamente assim que ele se sentia por dentro.

Depois de alguns minutos (talvez muitos) de perplexidade estática, durante os quais Thiago reviveu os momentos finais, em que ela trancara a porta da frente depois de lançar-lhe um olhar sem sentido, ou cujo sentido ele não podia compreender, levantou-se quase inconscientemente e foi caminhando pela casa. A cozinha também estava vazia. O banheiro era insuportável de tão vazio. O quarto era uma planície erma. Até o quintal, cheio de plantas e atravessado por um varal meio cheio, era vazio. Chegava a ser estúpido.

Naquela noite, Thiago não conseguia dormir. Mas não estava inquieto, nem triste, nem nada. Não conseguia nomear o que sentia, mas algo dentro dele o incomodava insistentemente, quase sutilmente. Estava vazio.

Foi só na manhã seguinte, após horas e horas de insônia, que Thiago chegou a uma conclusão racionalmente aceitável de por que se sentia tão oco: ele precisava de algo que se movesse voluntariamente dentro daquela casa. Algo que emitisse sons, fosse visível, tivesse um mínimo de vontade própria. Ele olhou ao redor e gavetas encaravam-no com um ar opressor. Ele havia se dado conta de que sentia menos falta de sua namorada do que da presença física dela. Lembrou-se de ocasiões em que sentia-se tão satisfeito ao ouvir a voz de sua amada, e constatou pela primeira vez que o que ela dizia não era importante; apenas o som de sua voz lhe bastava. Por isso as reclamações dela, por isso a total falta de habilidade dele em compreendê-las. Ela dizia que ele não a entendia. Mas ele, à sua maneira, a compreendia totalmente: ela era a voz na cozinha, o corpo quente na cama, a mão no ombro, a cantoria no quintal, e era o bastante. Para ele isso era o amor.

Passado o susto inicial devido à constatação de algo tão humanamente deplorável, Thiago tomou algumas horas de seu dia para filosofar acerca da natureza do amor. Chegou obviamente a conclusão nenhuma e decidiu que o melhor era ser pragmático: ele precisava de algo que se movesse dentro da casa. De algo que emitisse sons. De algo com vontade própria.

Ele precisava de um gato.

Mais tarde naquele mesmo dia, Thiago se dirigiu a uma casa de adoção de animais que existia perto de sua casa. O dono, um japonês velhinho e simpático, com uma risada contida e por isso engraçada, levou-o a uma pequena salinha na qual moravam os bichanos. Todos vacinados e limpinhos, garantia o japonês, e Thiago passava os olhos pelas jaulinhas a procura de algo que lhe chamasse a atenção. Viu então, junto de três outros gatos sem-graça, um lindo felino de pêlo cinza e olhos azuis. Tinha cara de ser uma boa companhia. Não estava miando histericamente, não estava pulando na jaulinha, estava sossegado. Quase blasé. Piscava devagarinho e parecia analisar a situação, acima de todos os outros bichos. Sim! Os outros eram todos bichos. Ele, sim, era um animal que merecia consideração. Dez minutos depois, Thiago saia do local com o gato, que já ganhara um nome adequado: Blasé, como não poderia deixar de ser.

O primeiro dia foi uma harmonia eufórica. Apesar de não ter dormido aquela noite, Thiago divertia-se com seu novo amigo. Coçava-lhe a barriga, ouvia satisfeito seu ronronar, assoprava suas orelhas, apertava-lhe as almofadinhas das patas para ver suas unhas, amarrava uma porcaria colorida num fio dental e saía correndo pela casa só para ver Blasé correr atrás, elegantemente, e lançar-se no ar, e confundir-se, e dar meia volta, e miar engraçado, e preparar-se para dar o bote, e atacar a porcaria colorida com precisão. A casa estava cheia de vida novamente e a noite chegou antes que Thiago pudesse se dar conta disso.

Com a cabeça bem-encaixada no travesseiro e o corpo devidamente coberto por um edredon pesado - ah, Thiago adorava os edredons pesados! -, ele não demorou mais do que cinco minutos para pegar no sono. E logo vieram os sonhos.

Thiago andava por uma rua azul de contornos flácidos. Os prédios pareciam que iam explodir a qualquer instante pois encontravam-se inflados, como se, de dentro deles, fosse jorrar um líquido gelatinoso. Roxo, provavelmente. A rua estava vazia e ouvia-se um realejo tocar ao longe. As nuvens emolduravam estranhamente um sol flácido. Thiago metia as mãos nos bolsos e andava no ritmo da música, assobiando junto. Surgia, então, uma figura ao longe. O som do realejo esvaía-se aos poucos e ouvia-se uma risada contida. Mas era só uma silhueta, e Thiago se aproximava cada vez mais e ainda só uma silhueta, os prédios moviam-se gelatinosamente, cada vez mais rápido, a risadinha começava a ecoar e Thiago já não tinha as mãos nos bolsos e corria em direção à figura, e quando estava perto, muito perto, a silhueta se transformava no rosto desfigurado e cinza do japonês que lhe dera o gato, e que parecia ser mais flácido do que todo o resto, e seus lábios moviam-se ritmadamente à medida que a risada ficava mais e mais alta, e Thiago não podia se mover e o espetáculo se desenrolava por eras.

Thiago acorda assustado, abre os olhos e lá está o gato. Em cima de seu peito, com as patinhas macias sobre seu edredon pesado, estático, olhando o dono nos olhos. Thiago mal respira, até que Blasé solta um miado engraçadinho, curto, quase que amigavelmente sarcástico. O susto havia passado.

Thiago passou a mão pelas costas do gato e, tirando-o delicadamente de cima da cama, levantou-se e foi comer alguma coisa. Já era quase de manhã, afinal. Durante o desjejum, Thiago ria-se por dentro ao lembrar de seu sonho absurdo, e divertia-se com a presença quase humana do gato na cadeira logo em frente - via-se apenas uma cabecinha por trás da mesa.

O dia foi novamente uma alegria. Thiago sentou-se no quintal e se deleitou com a visão de seu amigo peludo pulando para alcançar uma borboleta azul. Leu um livro com Blasé enrolado em sua barriga. Dividiu seu almoço com Blasé. Viu TV com Blasé ao lado e se impressionou com quão atento ele parecia estar à programação. Dividiu seu jantar com Blasé. Saiu do banho de cuecas com a escova de cabelo na mão e realizou uma incrível performance de uma música do Elvis sob o olhar curioso de Blasé. Coçou-lhe o pescoço longamente antes de dormir e, com o gato ao seu lado, na cama, foi aos poucos adormecendo, ouvindo o doce som de seu ronronar.

E lá estava ele novamente na rua azul. Os prédios flácidos o cercavam. Tudo se repetia, só que muito mais lentamente. Seus passos eram mais lentos, o sol parecia estar mais lentamente emoldurado pelas nuvens, o realejo tocava lentamente e os lábios grotescos do japonês moviam-se, insuportáveis, muito lentamente, por um período muito maior do que anteriormente, e seu sofrimento agora era lento, era progressivo, era constante e palpável.

Olhos abertos e lá estava ele novamente, estático, desta vez ainda mais próximo de seu rosto, emitindo um miado um tanto quanto insolente após longos segundos de contemplação mútua.

Thiago teria novamente agradado Blasé e desconsiderado o sonho agora recorrente se a insolência de seu miado não o incomodasse tanto. O dia foi estranho. Ele olhava desconfiado para o bicho, que lhe devolvia um olhar superior e despreocupado. Thiago jogava de longe uma bolinha, Blasé acompanhava seus movimentos com seus olhos profundos e depois olhava para o dono. Firmemente. O tempo passou pesado.

Naquela noite, Thiago voltou a sonhar com o japonês desfigurado, e novamente estava Blasé em seu colo no momento em que acordou. Noite após noite isso se repetiu. O sonho cada vez mais lento e Blasé demorando cada vez mais para miar, e cada vez mais insolência em seu miado. Thiago sentia-se cada vez mais preso entre sua cama e o gato. Aquela situação o afligia, daquela forma não era possível. Ele precisava se livrar daquilo, e rápido. Noites e noites sem dormir o levaram a engendrar seu plano.

Thiago afagou Blasé aquela noite com os olhos vidrados.

No dia seguinte, todo o bairro recebeu aterrorizado a notícia de que o senhor Yamashiro havia sido brutalmente assassinado durante a noite a golpes de pé-de-cabra.

Thiago e Blasé dividiam o jantar quando as sirenes se aproximaram.

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O próximo texto deve se chamar "A Saga do Bibliotecário".

2 Comments:

  • At 11:40 PM, Blogger dipnlik said…

    Quem tinha que morrer nessa história era o Blasé, droga. Hnfs.

     
  • At 2:46 PM, Anonymous Anônimo said…

    pq o japa morreu ???
    num inteddi nada........
    rsrsrs..
    muito legal o texto, embora não possa me furtar de dizer que eu no lugar do thiago,teria matado o blaser.....

     

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