Cousa: Schfrütz

Eis aqui um blog em que um ser propõe um título a ser preenchido pelo outro ser.

sábado, fevereiro 03, 2007

O Encontro



Sofrer é ver-se limitado depois de extenuar-se tentando vencer a causa daquilo que comumente se chama sofrimento. As pessoas chamam sofrimento o ato de estarem voluntariamente (por omissão) presas a uma limitação. Os ditos sofrimentos são transponíveis, e sua transposição só depende de uma necessidade real de liberdade que arrebata e não dá margem a preguiças ou justificativas. Deste dito sofrimento, só sofrem os que não anseiam verdadeiramente por liberdade, e estes são muitos. Os que sofrem genuinamente, os que sofrem o sofrimento autêntico, sofrem pela única causa justa (ou pela única causa autêntica, uma vez que a justiça pode encarcerar): a liberdade. Ser louco é estar preso, e quase todos estamos. A pior das loucuras é não buscar instintivamente a liberdade. Não a que termina onde começa a do outro (distância, medida e limite), mas a que pode ser vivida por todos para todos os lados e de todas as formas sem provocar prejuízos porque só pode ser vivida coletivamente; não também a liberdade egoísta na qual me imagino livre para matar, desconsiderar e menosprezar e assim subir degraus de pedra dentro do meu aquário pessoal esperando ver no alto a felicidade, a sabedoria, a auto-afirmação ou qualquer outra invenção, só para constatar que, se a subida tiver fim, ao topo não haverá nada além de loucura, loucura e solidão. A liberdade de que falo é a que em frestas da nossa realidade irrompe e exige de nós certas coisas que não faríamos normalmente. Neste sentido ser verdadeiramente livre é submeter-se a algo que nos ultrapassa (ou ultrapassa, intransitivo). Só somos verdadeiramente livres nos momentos em que fazemos algo por nos vermos, impotentes, impelidos a fazê-lo, a fazer algo que jamais faríamos em sã consciência. Destes lampejos de liberdade nascem amores e obras de arte; finda a noite ou emoldurada a obra, cá estamos de novo terrivelmente atados e sofrendo o falso sofrimento, inconscientemente ávidos da próxima fresta de liberdade.

Basta-nos?

***


Eu terminara aí meu malabarismo filosófico e dirigia a Heitor um olhar misto de indagação e chiste. O olhar que ele devolvia me divertia. Gosto de Heitor porque ele jamais me intimida; me admira e ouve calado, não tem crítica, o que faz dele um ótimo e seguro depósito para minhas verborragias. Eu poderia ter continuado: não, não nos basta, mas o limite máximo da hipocrisia seria quebrado e um pouco de dignidade precisa ser mantida; além disso, a pergunta quase retórica certamente o levaria a esta conclusão, que talvez em suas entranhas não fosse tanto uma hipocrisia quanto nas minhas. Porque veja, não chega a ser uma mentira, mas de que vale uma verdade quando ela não provoca uma ação? A princípio me desconcertava perceber que conclusões tão contundentes não provocavam automaticamente uma mudança de hábitos, mas aos poucos me acostumei a dizer que a única busca digna é a por liberdade e seguir buscando reconhecimento, conforto, café. Parecer elevado, quase abnegado, ascético, ao afirmar enfaticamente minhas conclusões: que outro embasamento pode haver? Explicações só são válidas se nos fazem mais livres, toda busca que não por liberdade será enterrada com aquele que nela se empenhou. Dizia eu, como que num púlpito ou palanque. Admiravam meu comprometimento, meu desapego. Consegui muitas mulheres assim. Inclusive uma freira.

O que Heitor, as mulheres e os outros não vêem é que nos acostumamos tanto a não ser livres que só do interior do nosso cárcere fomos capazes de detectar a prisão. E, como se sabe, não basta saber da existência das grades, apalpá-las longamente, pintá-las de laranja. Não nos livra. Mesmo os que constatam que o que perdemos foi afinal a liberdade e que buscá-la é a única forma de realmente viver não são capazes de seguir suas próprias advertências. Não porque não tenham meios: todos temos. Mas já não temos vontade. Tanto nosso cárcere embotou nossa vontade que já não temos impulso para romper grades. O impulso, aquilo que podemos e sabemos que devemos buscar, depende de si mesmo para ser encontrado. E, como não há, não há.

Então talvez eu seja menos hipócrita do que Heitor. Ou menos burro. Ele ou não é inteligente o suficiente para chegar a essa conclusão cabal ou não tem a coragem de admiti-la para si e também publicamente. Mas minha verborragia deteve-se no “Basta-nos?”. Até aí soei como um herói, talvez o último. Das implicações posteriores nada contei a Heitor. Ante a frase final, ele me lançou um movimento de pescoço e tomou um gole do café sem tirar os olhos de mim – respeito, admiração, talvez alguma subordinação? Ou quem sabe eu lhe parecia ser uma aberração enjaulada?

***


- Pensei naquilo que você disse sobre a liberdade.
- Hm.
- Eu conheci uma mulher.
- E?
- Não trocamos uma palavra, mas num certo momento olhei para seu corpo sem distinguir olhos, seios, boca, e houve um impulso.
- Sempre há, Heitor. É a coisa mais antiga do mundo.
- Não! Quero dizer, é a coisa mais antiga do mundo, mas só quando é assim, de verdade. Sem licença poética: o seu corpo era uno, o impulso levou minha mão até ele, o toque borrou algum limite e isso era a liberdade.
- Como ela chama?
- Não sei.
- Hm.
- Não importa.
- Ia falar: “Peça fulana em casamento.”
- Não é assim.
- Se essa mulher lhe deu a liberdade, Heitor! É a única busca digna, não é? Não é o que você quer? Ou é pavor de monogamia?
- Não é assim. Não combinamos os encontros: vimos-nos fortuitamente, duas vezes. Na primeira eu a segui sem saber porquê mas com a certeza do seu consentimento. Passamos a noite juntos, num hotel; na manhã seguinte saí enquanto dormia, sem fazer barulho, ainda com a impressão da liberdade que havia se configurado. Tive a impressão de que, caso a acordasse, a experiência se desvalidaria. Pensei que não mais a veria. No entanto, nos cruzamos novamente; eu a avistei de longe, na rua, e percebi que ela também havia me visto. Andamos sem afetação um em direção ao outro e, no mesmo instante, paramos, com os rostos quase colados. Desta vez ela me seguiu, mas levá-la até minha casa parecia um erro, um solvente. Fomos para outro hotel e novamente tive este contato com a liberdade de que falo. Percebe? Agora sinto que é possível que nos vejamos novamente sob circunstâncias parecidas, e esta esperança, ainda que não se concretize, é melhor do que qualquer busca ativa ou tentativa de oficialização. Seria um cárcere, e todo cárcere dilui – será que a liberdade não é a vida concentrada?
- Você é um romântico, Heitor.

***


Heitor provavelmente delira ou é muito ingênuo. Não me surpreenderia que esta mulher o procurasse para um terceiro encontro e lhe apresentasse uma conta pelos serviços prestados. Pobre Heitor; se o que contou de fato se deu, ele decerto vê mais do que realmente há. Até que ponto a auto-sugestão pode influenciar um homem! Se não tivesse na mente tudo o que lhe disse, e que lhe pareceu tão belo (talvez uma saída, uma explicação), veria que esta Afrodite não pode existir. O cárcere é coletivo. Ela só pode ter motivos de dentro do cárcere. Dinheiro, sexo? Ou busca dentro do cárcere uma solução para sua solidão que consiste justamente em estar encarcerada? Neste caso, ambos se iludem na liberdade que momentaneamente alcançaram. Ela não se sustenta nesta prisão, porque aqui se busca a estabilidade e o conforto controle-remoto de ter tudo à mão. Eles hão de querer deixar de depender de encontros fortuitos para alcançar esta liberdade. E a partir do momento em que começarem a buscar-se mutuamente, ainda que apenas passando a vagar sem rumo por mais tempo, na esperança de um encontro, terão se trancado cada qual em sua cela e, por mais que de fato talvez se amem e não cheguem a contrair matrimônio ou mesmo a saber o nome um do outro, só poderão acenar por entre as grades e aí nada disso fará sentido. No fundo é um beco sem saída.

***


- Será que a liberdade não é a vida concentrada?

Já pensei que a liberdade era a morte. Se nesta vida estamos condenados à solitária, é apenas lógico concluir que a antítese da vida é a antítese do cárcere: a morte é a liberdade. Por isso a afirmação de Heitor me pareceu a princípio tão absurda e romântica. Mas agora, que não consigo dormir pensando em Heitor e na liberdade, penso que não poderia fazer mais sentido: a morte é a vida concentrada. Convenhamos: estas coisas que discernimos e com as quais convivemos não merecem o título de vida. O escritório, fazer a cama, Coca-Cola... só chamamos a vida de vida porque a estes elementos somam-se outros que fazem com que não seja heresia dar ao conjunto o nome de vida. Mas é vida esparsa: a maioria dos elementos é banal e clara demais, pentear os cabelos, discutir idéias, fazer contas. Tudo muito fácil de ser manejado. A vida não valeria a pena se tudo estivesse assim Coca-Cola, sob nossa égide. Vivemos porque de tempos em tempos algo nos arrebata, algum milagre se dá, somos capazes de olhar para um gato e nos sentir irmanados. Às vezes no sexo não sabemos quais são os limites do nosso corpo. Às vezes uma paisagem deixa de ser tema para uma natureza-morta e se faz viva, em sua harmonia de movimentos e em sua coordenada placidez, e às vezes podemos senti-lo ainda que apenas por um momento. Sem isso, suicídio na certa. No entanto, nestes momentos de vida intensa já não somos indivíduos, sujeitos, eixos-do-mundo: a vida se intensifica à medida que nos apagamos. Apagar-se definitivamente é morrer. A vida intensa, que é a liberdade, é a morte.

***


- Vimo-nos novamente.
- Quem?
- Eu e ela.
- Ah.
- Do outro lado da cidade, em extremos opostos de um vagão de metrô. Nossos olhares se cruzaram e sem premeditar desci na estação seguinte. Ela fez o mesmo. Fomos novamente para um hotel, despimo-nos e adormecemos imediatamente um nos braços do outro. Sem sexo. Tive sonhos imagéticos, povoados por seres fantásticos. Quando acordei, ela já não estava lá.
- Você ainda vai me convencer de que não imagina esta mulher.
- Tenho certeza. É o que de mais real já vi.
- Os hotéis têm um papel importante nesta sua cruzada pela liberdade, hã, Heitor...?
- São terreno neutro e anônimo. Nenhuma particularidade pregada na parede, estendida no chão ou exposta em porta-retratos.
- Sei.
- ... Acho que é isso que é amor.
- Encontros fortuitos com uma estranha em hotéis sujos.
- Não, essa vida concentrada. Essa liberdade é o amor.

***


Se é certo que todo ser humano busca o amor, então as esperanças não estão tão perdidas. Estamos todos engajados nesta busca digna pela liberdade. Mas se esta liberdade é, em última instância, a morte, que sentido faz permanecermos vivos? Se a morte é a vida concentrada, porque devemos nos contentar com os raros momentos dela em meio à prisão que é estar vivo? Talvez estar preso seja condição para vivenciar esta liberdade. Doses diárias e efêmeras da morte, que só se torna objetivo e prazer por contraste. Não fôssemos tão auto-centrados, tão racionais, tão solitários, de nada valeria o amor, essa liberdade. Não se trata de buscar a morte, querer a morte. Suicídio não muda nada. Já o amor, essa morte homeopática, é uma resistência, quase uma declaração, talvez a única rebeldia justificável. Manter-se voluntariamente encarcerado para poder tirar prazer dos raros momentos de liberdade que, não fosse o cárcere, seria contínua e portanto dissolução total, silêncio, escuridão, nada. Compreendo porque Heitor se mantém vivo. Quer esta mulher exista como ele relata, quer seja fruto de auto-sugestão, tornou-se sua porta para esta resistência final. Heitor não é, afinal, burro ou hipócrita. Talvez não tenha percorrido o caminho intelectual que leva a esta (quase) absurda constatação, mas ele já sabe (sente?) que este amor é necessário porque é uma investida contra o cárcere. Estar morto não mereceria adjetivos. Amar como forma de resistência é belo. E é também uma esperança, talvez a última, não sei de quê.

***


- Continuamos nos encontrando por obra do acaso. É sobrenatural. Fico com a impressão de que basta querer. Não como nos filmes de fadas: fechar os olhos e repetir o desejo... querer mesmo, sem que seja preciso pensar naquilo que se quer. É só quando nos encontramos que me dou conta, semiconsciente, do quanto desejava vê-la.
- Vou tentar nas horas vagas.
- Sei. Se quiser eu paro de falar. Não adianta querer diálogo e troca quando existe uma barreira de sarcasmo.
- Não me leve a sério, Heitor. Estou só brincando com você.
- Você acha que eu sou ingênuo.
- Não.
- E que a solução que eu encontrei para o seu problema do cárcere é insuficiente.
- Não! Heitor.
- E que a mulher é uma invenção.
- Heitor, não. Desculpe. Eu caçôo por hábito. É parte do meu cárcere. Eu acredito. Eu acredito.
- Eu quase não acredito.
- Como?
- Não me lembro da sua aparência. Às vezes penso estar ficando louco. Mas talvez a loucura seja uma forma de liberdade.
- ...
- ...
- Heitor, loucos somos os encarcerados. A sua loucura é certa.
- E se eu inventei esta mulher?
- A sua loucura é certa.

***


Caídas as máscaras, a verdade é que agora o invejo. Em alguma porção podre de mim, sinto-me roubado e traído. Não fosse minha verborragia sobre a liberdade, este processo ou coisa que o valha não teria se desencadeado em Heitor. É certo que ele encontrou o amor sem barreiras e a liberdade (temporários, pois é assim que os queremos, que precisamos deles)? Se sim, isso é dado a todos os homens? O que me impede de vagar sem buscar nada e conquistar sem palavras o amor, a liberdade, um pouco da morte que me livraria do cárcere de mim mesmo? Penso que duvido demais, embora agora acredite totalmente em Heitor. Esta dúvida talvez não seja dúvida: talvez seja a expressão racional de um desejo terrível.

***


- Diverti-me muito. Há muito tempo não tinha uma conversa tão séria com alguém, e ainda assim me diverti.

Marcela sorria e me dirigia um olhar semelhante ao que Heitor me dirigira após me ouvir falar sobre as mesmas coisas. A diferença é que Heitor estava do outro lado de uma mesa num café; os olhos de Marcela estavam a poucos centímetros dos meus, ela em frente à porta de sua casa e eu um degrau abaixo, após um longo jantar regado a vinho e à verborragia que sempre, sempre funciona. O prazer sempre renovado de parecer profundo e autêntico ainda que às custas de fazê-lo diante de um completo estranho. Marcela e eu havíamos nos conhecido poucas horas antes, fruto de uma abordagem calculada de minha parte, numa praça, ao pôr-do-sol.

Marcela já me beijava devotamente.

- Vem, entra.

Subi com ela, quase puxado por sua mão tão delicada e decidida, uma longa escadaria de madeira escura. No final do corredor, dobramos à direita e entramos em seu quarto. Cama milimetricamente arrumada, móveis coordenados, um perfume delicioso.

Marcela é linda. O cabelo longo de um castanho quase comestível brinca de esconder seu rosto, seus ombros, seu colo. Grandes olhos negros percorrem meu rosto, lábios finos e um pouco precipitados buscam os meus. Dedos longos terminam em unhas curtas e delicadas que ela desliza vagarosamente sobre minha pele. Marcela é linda e me envolve inexoravelmente na sua coreografia.

Deitamo-nos. Ela me posiciona, me beija ternamente, sorri, se posiciona e dá continuidade ao programa, maestrina virtuosa. A orquestra, boa orquestra, obedece. Fecho os olhos: some o quarto, estou em uma sala de concertos muito etérea. Marcela regendo como uma dançarina do ventre. Envolve-me, no compasso. Soam os metais, pianissimo. Lembro-me de Heitor, que adora concertos. Tchaikovsky. O ombro de Marcela cheira a canela e mel; envolvo sua cintura. Inveja, inveja de Heitor e de sua liberdade. Como pode, como pode ter gostado de concertos? Agora ouve e acompanha outro canto, sem partituras. Marcela, seus dedos longos envolvendo minha nuca, o corpo em arco: é linda, ótima, grande artífice. Entrego-me. Já Heitor se entrega à terra úmida, a um fruto misterioso, a um lago plácido. Soam os metais: mezzo-forte. Marcela e sua batuta; movimentos precisos. Penso, e recuso como um vômito: algum crítico diria que lhe falta alma. Ela soube até compassar sua respiração à minha. Seus lábios, quase colados aos meus, soltam ritmadamente um ar quente e úmido, canela e mel. Onde estará Heitor? Quero perguntar: como cheira a sua liberdade? Esta mulher, como cheira? Como respira? Como se chama? Marcela, soam os metais: forte. Não se apresse. Não preciso dizer-lhe: mestre na sua arte, Marcela. Movimentos suaves da batuta em sua mão. Um mover de olhos negros por trás do véu. Maestrina odalisca, Marcela, corpo úmido de suor, mãos firmes, os cabelos em meu rosto são uma tenda – canela e mel. Heitor! Como é a sua mulher? Que cheiro ela tem? Que tem ela que se faz porta para a liberdade, a morte? Como se chama? Marcela, hábil, hábil dançarina, é isso o amor? É decerto uma bela representação, que espetáculo, Marcela. Heitor, você tem que ver esta mulher, Heitor. Que cheiro tem? Soam os metais: fortissimo, já se avizinha o fim do concerto, como chama a sua mulher? Marcela, todo o corpo envolvido no movimento final, maestrina hábil, odalisca, artífice! Heitor, eu o invejo; que cheiro tem sua mulher? Como chama? Marcela, canela e mel.

***


- As coisas não são fáceis. Fui burro ao ser otimista e esperançoso.
- Que há?
- Não a vi mais. Lembro ocasionalmente do quanto quero vê-la, mas não a procuro. Sei que este mundo é fruto do meu desejo. Ela talvez também o fosse. Se não vem mais, sinal de que meu desejo enfraqueceu? Sei que a desejo, mas pouco ou nada vale saber desejar algo ou alguém. Só sei que não a tenho visto.
- A coincidência e o acaso não são regidos por leis estatísticas, Heitor. Foi suficientemente inacreditável que vocês tenham se encontrado tantas vezes. Não se sujeitar ao tempo do acaso, se é que você pretende esperar, seria colocar novos cadeados no cárcere.
- A questão não é essa. Sinto que algo não está certo. É claro que sob um ponto de vista lógico eu sei que não deveria esperar revê-la. Mas a sensação nada tem a ver com a demora, o calendário. Algo não está certo.
- Por que entramos aqui, Heitor?
- Não sei. Não sei. Rápido, essa escada lateral. Assim não nos vêem.
- Heitor, o que é isso, aonde vamos?
- Ali, ali, aquela porta à esquerda. Algo não está certo. Abra a porta, eu não posso.
- Precisamos sair daqui.
- Abra a porta, por favor, por favor. Está destrancada, eu sei.

***


Um quarto sujo de hotel, uma mulher estendida na cama, os cabelos castanhos bagunçados sobre seu rosto, ombros, colo. Braços e pernas como se dançasse, suave. Nos dedos finos terminando em unhas curtas, um revólver. Sob a cabeça, um travesseiro empapado de sangue. No ar, cheiro de canela e mel.

- Marcela!

Heitor, pálido:

- É ela.

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Texto fresco, escrito nesta madrugada. Primeira versão total. Mas taí.

Só agora vi que faz meses que apareceu a sugestão de título! E ficou como o meu plano de fundo esse tempo todo. Cheguei a escrever um outro O Encontro, mas era realmente péssimo. Enfim, antes tarde!

Por mim continuamos com a sugestão de títulos. Se não, conversamos depois. De toda forma: o próximo deve ser chamar A Escola de Caligrafia do Sr. Bastos. Um pouco de humor nessa vida, será? :)

quarta-feira, setembro 27, 2006

Marola


Depois de um dia impossivelmente longo de trabalho irrelevante e cansativo, ele voltava reconstruindo nos labirintos de sua mente o labiríntico caminho para sua casa, um amontoado de direções que se traduziam em ruas ruelas escadarias passarelas pontes etc. Todo dia há um tanto tempo fora assim, e parecia que assim seria por um tanto tempo mais, e isso surpreendentemente, ou talvez não, despertava nele nenhum tipo de tédio ódio marasmo raiva inquietação etc. Indiferença. Conveniente, rotineira indiferença. E sem sequer pensar nisso ia fazendo pela cidade cinza seu caminho cinza rotineiro indiferente cotidiano eterno etc. Talvez esse caminho labiríntico fosse a única certeza de sua vida irrelevante e cansativa.

Depois de um dia cansativamente irrelevante de trabalho longo e impossível, ele voltava reconstruindo nos caminhos de sua mente o labiríntico labirinto para sua casa, um amontoado de direções que sem a menor explicação razão porquê causa sentido etc. se misturaram, confundiram, e ele se perdeu, assim como sua certeza. A cidade era igualmente cinza, as ruas igualmente sóbrias, mas sua indiferença agora se tornava angústia medo raiva desalento desespero etc. Tentou refazer seus passos, mas não conseguiu, e começou a andar a esmo, esperando que seu labiríntico caminho aparecesse dentre os incontáveis caminhos que ele agora traçava.

Depois de uma noite longamente impossível de deriva cansativa e relevante, ele decidira conscientemente, ou talvez não, andar somente em linha reta, certo de que isso o levaria de volta ao seu caminho ou a algum lugar conhecido. Estava impressionado com o sol do meio-dia, que ele não via há um tanto tempo, sol forte estranho quente incômodo poderoso etc. Caminhou até chegar ao cais do porto, onde por razões óbvias teve de parar de caminhar. O sítio não era de todo estranho, lembrava agora que o havia visitado há um tanto tempo em sua infância, uma memória enterrada nos labirínticos caminhos de sua mente, mas uma memória reconfortante. O oceano verde azul inquieto imenso eterno etc. era uma das coisas mais lindas que já vira, mas sem sequer pensar nisso, resolveu que o mar era apenas mais um obstáculo no caminho de seu caminho, e convicto a continuar seguindo em linha reta, logo achou um bote a remo por ali guardado e não hesitou em colocá-lo na água e começar a remar.

Depois de dois dias impossivelmente longos de trabalho incessante e cansativo, ele repousava no fundo do barco, olhos semicerrados, corpo tomado pelo cansaço estafa exaustão esgotamento lassidão etc. Acima, um céu anormalmente estrelado. Tentava reconstruir nos caminhos labirínticos de sua mente o amontoado de direções que o acabaram por desviar de seu labiríntico caminho, e sem sucesso por fim desistiu. Sua atenção foi se desviando vagarosamente para o balanço do barco, para as marolas que causavam tal balanço. Cada uma das marolas, concluiu, era um caminho. Um caminho quase insignificante, um caminho que não leva a lugar algum, que apenas levanta o barco alguns centímetros e o traz de volta. Mas era um caminho simples harmonioso sutil natural reconfortante etc. Concluiu que talvez fosse esse o caminho que realmente estava procurando. E pensando nisso relaxou, pronto, ou talvez não, para seguir esses pequenos caminhos até o fim de sua vida. Eles eram sua nova certeza.

Depois de sabe-se lá quantos dias, que passaram desapercebidos, ele acordava. O quarto branco tinha um cheiro forte artificial etéreo estéril estranho etc. Calculou logo que estava num hospital, e que alguém o deveria ter encontrado. Lhe informaram que estava se recuperando bem, e que poderia ir para casa logo. Enquanto esperava, pôs-se a pensar em como havia perdido seu caminho e encontrado outro, mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão iluminadora, parecia não haver nenhum propósito desígnio escopo finalidade tenção etc. nos acontecimentos que se passaram. Mas nunca mais deixaria de pensar nisso.

Depois de dois dias infinitamente tediosos de marasmo incessante e monótono, ele voltava do hospital reconstruindo nos labirintos de sua mente o labiríntico caminho para sua casa, um amontoado de direções que se traduziam em ruas ruelas escadarias passarelas pontes etc. Talvez nunca mais esquecesse esse caminho, mas isso não mais fazia dele uma certeza. Nunca mais conseguiu dormir sem sentir as marolas que o embalaram aquela noite, mas não pensava nelas conscientemente. E todos os dias doravante, quando voltava do trabalho, talvez houvesse escondido em algum canto dos labirintos de sua mente um desejo delírio impulso talante líbito etc. de novamente se perder e se entregar às marolas que por um momento deram sentido à sua vida, ou talvez não.

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Obs. 1: Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé.

Obs. 2: Não vou dar o nome do próximo texto ainda porque preciso resolver umas coisas com a outra nobre integrante desse brog. Antes de tentar qualquer coisa nova, acho que preciso recuperar um pouco de ritmo... Então vou sugerir um título, e depois a gente vê o que faz. O próximo texto deverá se chamar "O Encontro".

É só.

segunda-feira, março 21, 2005

Cinqüenta Centavos



Uma rosa em cada têmpora, presas a um elástico que circundava equatiorialmente seu crânio e terminava num laço de longas pontas que se misturavam aos cabelos sujos. Um casaco feito de tiras de tecido de todas as cores e em todas as estampas imagináveis cobria-lhe a parte superior do corpo, ainda que quase sempre se pudesse ver, pelas lacunas do trançado ou devido a uma movimentação excessiva que lhe era peculiar e que fazia com que as roupas nunca estivessem no lugar, trechos de uma pele encardida, quase cinza. Calças cortadas em tiras dos tornozelos até os joelhos, uma moeda furada amarrada numa tira de tecido como colar, pés no chão e uma grande bolsa de mulher toda ornamentada por tiras de tecido que pareciam fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim. No rosto, um sorriso sem dentes estava sempre estampado, e as marcas de expressão ao redor dos olhos eram tão profundas que provavelmente se rasgariam e delas sairia um sangue muito vermelho caso aquele sorriso fosse trocado por qualquer outra expressão.

Movimentava-se como um mestre de cerimônias. Dançava no meio da rua enquanto cantava músicas que ninguém conhecia e que tinham ritmos e melodias cuja lógica escapava aos ouvidos de todos que, propositalmente ou só de passagem, assistiam ao seu espetáculo. Batia os calcanhares no chão e dava saltos surpreendentes, girava com braços e olhos muito abertos e as fitas da sua bolsa enrolavam-se no seu corpo, encolhia-se subitamente e no momento seguinte saltava como um dançarino de frevo, como um dançarino de frevo que acabara de acordar, como se todo dançarino de frevo acordasse com um salto, agarrasse um pequeno guarda-chuva colorido que surgisse inexplicavelmente e fosse, saltando e girando, enfrentar o dia.

Atrapalhava o trânsito, mas nunca havia sido atropelado e raramente era insultado. Sempre que uma cabeça se projetava para fora de uma janela de carro e, acompanhada por uma buzina, xingava-o de louco, bêbado, louco bêbado, ele parava na frente do carro, desculpava-se com uma reverência e, com um golpe de calcanhar, saía da frente do veículo e apontava com todo seu corpo, muito curvado para a frente, a diração a ser seguida, repetindo sempre: "abre-alas, minha gente!, abre-alas!". E recomeçava a dança.

Morava num ponto de ônibus, para onde ia quando se cansava de seu espetáculo. Lá, recebia as visitas quase que diárias dos moradores da região, que lhe traziam água, comida e, por vezes, cobertores ou roupas. As roupas ele cortava em tiras e guardava num saco. Também passavam por lá pessoas dispostas a dar-lhe dinheiro, dinheiro esse que o Homem das Rosas, como era conhecido, usava principalmente para, duas ou três vezes por semana, ir a uma floricultura e comprar duas novas rosas para seu adorno. As antigas, guardava-as na bolsa, enfiadas desajeitadamente entre as páginas de um livro grosso.

O Homem das Rosas era um dos assuntos preferidos dos freqüentradores de um bar bem em frente ao ponto de ônibus em que morava. As conversas sobre ele nunca chegavam a lugar nenhum e geralmente cediam lugar a outros assuntos, mas ainda assim eram raras as noites em que ninguém, entre uma dose e outra, se lembrava do insólito morador do ponto de ônibus. Inácio, que havia se mudado recentemente para aquelas bandas, logo percebeu isso e procurou se informar a respeito.

- É um louco, só isso! - dizia Alfredo, um homem gordo e enfezado que estava ao lado de Inácio, no balcão. - Freqüento este lugar há doze anos e há doze anos vejo o Homem das Rosas fazendo sempre a mesma coisa: as roupas, as dancinhas, o sorriso desdentado.

- É também o que eu penso! - acrescentou Alan, um homem bem-vestido que estava ao seu lado. Intelectual que se interessava profundamente pelo que chamava de "a podridão humana", freqüentava aquele lugar que chamava de "a espelunca" sem o conhecimento de ninguém de seu círculo social. - Eu já pensei que ele fosse mais, sabe? Mais do que isso. Que mais dia, menos dia, ele ia entrar aqui, subir numa mesa e fazer um discurso, revelar o sentido da vida ou algo assim. Ou que pelo menos houvesse algo nele, ou algum traço do comportamento dele, que explicasse o todo, e que fosse uma dessas explicações desencadeadoras, que te fazem fugir do país, deixar a esposa, dar um tiro nos miolos ou adotar um cachorro, sabe? Uma coisa que fosse, assim, quase que uma epifania. Eu tive essa esperança durante muito tempo. Queria escrever um livro sobre isso, sabe? "O Homem das Rosas". Só pela diversão de ver meu livro sendo confundido com o do Umberto Eco. Mas que nada... há anos venho aqui e há anos é a mesma coisa. Chega a ser entediante, entediante, entediante... - e foi afundando o rosto num copo de cerveja.

Inácio tragou seu cigarro enquanto olhava para o Homem das Rosas, que dormia no ponto de ônibus com aquele sorriso no rosto. Sua contemplação foi interrompida por uma voz de mulher, coisa rara naquele lugar.

- Ele só está esperando.

Todos voltaram os olhos para Tina, uma mulher de meia-idade, meio acabada, coberta por maquiagem barata, perfume doce e roupas desconjuntadas. Ela segurava o cigarro no meio de dedos ossudos com unhas muito compridas pintadas de um vermelho vivo e soltava a fumaça para cima, com os olhos semicerrados e as pernas, assustadoramente finas, cruzadas.

- Esperando o quê, mulher? - perguntou Alfredo, impaciente.

- Esperando ter dinheiro suficiente para comprar uma furadeira com uma... broca, né? É. Uma broca especial, sei lá.

Cercada por olhares que pediam explicações, Tina se viu obrigada a continuar.

- Ué, anos e anos ouvindo vocês falarem dele! Fui lá conversar, né? Foi meio difícil de entender; além de não ter um dente na boca, o cara não fala coisa com coisa.

- Louco... - acrescentou Alfredo. Tina apontou para ele e fechou os olhos enquanto dava um gole na sua bebida, como que em sinal de concordância.

- De pedra, Alfredo. De pedra. Mas enfim, resumo da ópera: pelo que eu entendi, alguém - algum outro louco, provavelmente - deu pra ele uma moeda de um real com um furo, aquela que ele usa no pescoço e acha a coisa mais linda. Aí, já que ele acha a coisa mais linda, ele separa as moedas que ganha de esmola: umas pra comprar essa furadeira especial e outras pra furar quando ele já tiver a furadeira, que ele quer fazer colar de moeda. E ele me disse que já tem quase todo o dinheiro e me fez prometer que ia na loja comprar a furadeira pra ele, porque chutam ele pra fora das lojas, né?

- E você prometeu? - perguntou Alan, divertindo-se com aquela história que de certa forma reavivava suas esperanças quanto ao livro.

- Ué, gente! Prometi. Dizer não pro louco? Tá louco... além do mais, que é que eu tenho de mais importante pra fazer?

Naquele momento todos se viram segurando cigarros, cervejas e pingas com os cotovelos sobre um balcão ensebado e compreenderam Tina, que já estava observando as curvas que a fumaça do seu cigarro fazia no ar parado do bar. Algumas doses e piadas depois e todos voltaram para as suas casas, sem deixar de lançar um olhar renovado para o Homem das Rosas que dormia e sonhava com sabe-se lá o quê naquele ponto de ônibus.

Os quatro só se reuniram novamente no bar uma semana depois. Tina foi a última a chegar e, sem nem dizer boa-noite, começou a relatar o dia anterior.

- Logo cedo, gente, logo cedo - me vê uma pinga? -, passei pelo ponto e o louco me estendeu um saco cheio de notas e moedas. Aí, né, eu fui até aquela loja de material de construção, três quadras passando o mercado, sabem? Então. Morta de vergonha, né? Com aquele saco ridículo. Bom, entrei e achei a droga da furadeira, o vendedor me olhando com aquela cara, vocês imaginam, né? Sendo que eu não tinha dormido. Ressaca ressaca ressaca... - deu um gole na pinga enquanto fazia um gesto pedindo a pausa. - Bom, o caixa pegou e foi contando o dinheiro, e eu lá, naquela situação, gente. Imagina. Faltou dinheiro, né? Uns cinco reais, que eu paguei, porque eu não ia fazer o moço contar tudo aquilo e aí falar que não ia levar, mas enfim. Peguei o pacote, pesava pra diabo. E a subida, né. Mas eu agüentei, tanto que tô aqui, e levei lá pro Homem das Rosas. Gente: vocês não imaginam a felicidade do louco. Me pegou no colo, me fez dançar com ele, imagina!

- The happening of a lifetime... - disse Alan, baixinho, quase que pra si mesmo. Tina deu mais um gole na bebida.

- E aí eu sentei lá no ponto enquanto ele abria o negócio. Depois ele me arrastou até a casa daquele velho que gosta dele, ou tem dó, sei lá. Entramos, ele ligou a coisa na tomada e começou a furar as moedas. Ele me deu um saco cheio de tiras de tecido, que fediam pra caramba, e me pediu pra enfiar uma fita em cada moeda, pra fazer os colares, né? E eu fiz.

Tina virou o resto da pinga enquanto os outros esperavam ansiosamente.

- Cinco horas! - disse ela, limpando os lábios e borrando um pouco o batom. - Cinco horas! Era tanta moeda, gente, que levou cinco horas pra fazer os colares.

Todos se entreolhavam enquanto Tina acendia um cigarro e cruzava as pernas finas. Quando o silêncio se estendeu por mais tempo do que Alfredo podia suportar, ele bateu de leve no balcão, demonstrando alguma irritação, e disse:

- E aí, Tina? E aí?

Tina olhou surpresa pros três.

- Ué, gente. E aí nada, né? Ele foi pro ponto e tá dormindo até agora, ó lá.

- Ah, que grande bobagem! - berrou Alfredo, batendo mais forte no balcão.

- E a epifania, mulher? Cadê a minha epifania? - vociferava Alan, como quem tem os sonhos arruinados.

- Ué, gente! Ué...

Enquanto Tina se justificava, Inácio se afastou da discussão e olhou para o Homem das Rosas, que dormia no ponto. Talvez fosse o suficiente. O que aquilo revelava? Nada, e talvez fosse essa a grande revelação. Se a alegria daquele louco que dormia era ter um saco de colares de moeda naquela bolsa de mulher, o problema era dele. Aliás, nem era um problema. Esperar que aquilo tudo terminasse com uma epifania, como queria Alan, era inocente da parte deles. Ou egoísta, talvez. O Homem das Rosas sempre estivera alheio àquilo tudo - louco, afinal. Crer num propósito superior para as manias daquele louco chegava a ser ridículo. Era buscar no Homem das Rosas alguma explicação pré-fabricada para alguma questão não-formulada. Uma epifania, minha gente? Que é isso... que busca é essa? Inácio olhava para Tina, Alfredo e Alan e só conseguia ver pedaços de pessoas que buscavam no Homem das Rosas alguma emoção, alguma explicação, uma epifania. E ele próprio tivera esperanças de que algo revigorante - desencadeador, como dissera Alan - pudesse sair daquilo tudo. Sentia vergonha, sentia-se um pedaço de pessoa fumando e bebendo naquele bar. O que mais fazer, no entanto? A noite nunca foi uma criança...

Neste momento, em que Tina já havia se irritado com Alan e Alfredo e apontava uns dedos ossudos para os narizes dos dois, em que Alfredo estava a ponto de virar um tapa na cara cheia de pó daquela mulher, em que Alan começava a perceber o ridículo daquilo tudo, em que Inácio já se perdera em pensamentos e em que o dono do bar começava a se preocupar com o tumulto, uma música cuja lógica escapava aos ouvidos de todos fez com que o silêncio se instalasse de súbito no local. Todos olharam para a porta do bar e viram o Homem das Rosas adentrar o recinto com aquela movimentação de mestre de cerimônias, batendo os calcanhares no chão e girando. Ele trazia nas mãos os colares de moeda.

Ninguém pôde se mover enquanto o Homem das Rosas dançava e colocava um colar no pescoço de cada um que estava ali. Os olhos de Alan brilhavam, premeditando a epifania. O Homem das Rosas executava passos rápidos e leves, que prendiam o olhar de todos. Os colares foram sendo distribuídos, um a um, e ninguém pôde repelir aquele louco que colocava uma tira de tecido encardido em volta de todo pescoço que via. Tina foi a última a receber o seu e teria sido possível notar um rubor no seu rosto - apesar de todo aquele pó - quando o Homem das Rosas deu-lhe também uma de suas rosas, colocando-a por entre o emaranhado dos seus cabelos antes de dar meia-volta e sair dançando do bar, não sem antes agradecer a todos com uma grande reverência. Teria sido possível, mas todos estavam ocupados demais constatando que, em todos os colares, reluzia uma moeda de cinqüenta centavos, enquanto que o agora Homem da Rosa trazia junto ao peito uma moeda muito suja de um real.

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Zu, vamos manter esse negócio? Eu adoro esse negócio. Esse negócio me faz bem.

O próximo texto deve se chamar "Marola".

sábado, março 19, 2005

Piano Velho


Francisco nunca soube exatamente porque escolhera aquele piano. Estava desafinado, quebrado e o som não era exatamente excepcional. O vendedor sequer sabia dizer quem era o fabricante, mas não desistiu antes de uma minuciosa busca no interior e no exterior do instrumento, por um nome ou alguma informação. Nada achou, e já esboçava um pedido de desculpas quando Francisco, que já havia se decidido há muito tempo – mas ainda estava tentando segurar o riso devido aos malabarismos executados pelo vendedor em sua busca – interrompeu e fez a compra, por um preço bastante justo.

Depois de colocar o enorme piano na sala de estar, Francisco percebeu que mais peças haviam se quebrado no transporte. Imediatamente ligou para um amigo de longa data: Michelli, um velho italiano que por acaso era um ótimo afinador. Para a surpresa de Francisco, Michelli também parecia fascinado ao observar o antigo instrumento, e isso o convenceu de que realmente havia algo de incomum, talvez especial, nesse piano. Os dois trabalharam com afinco, reconstruindo cada peça, cada mecanismo quebrado, e o resultado foi muito mais do que satisfatório.

Francisco estava muito feliz, finalmente tinha um piano somente para ele. Sempre tocara, um excelente músico, mas nunca pôde dedicar-se tanto quanto queria à musica. Ter o instrumento em casa sempre fora seu sonho. Logo começou a compor: o fazia de madrugada. Afinal a madrugada é fresca e silenciosa, e o músico não via hora melhor para se ter o máximo possível de concentração. Então, de madrugada, Francisco sentava-se diante do piano, tocava algo para se aquecer – freqüentemente Bach – e logo emendava em trechos originais, escrevendo-os o mais rapidamente possível. E assim seguia até a manhã. Só deitava-se ao primeiro pio do sabiá de peito amarelo que vivia na árvore em frente a sua janela – e cujo canto já sabia de cor.

Certa feita, ao ligar para a casa de Michelli, Francisco teve uma surpresa. Queria uma afinação de rotina, mas ficou um tanto chocado com a notícia de que o velho amigo havia se aposentado. Mandaria de muito bom grado sua filha Nina para fazer o serviço. Ao contrário do que o músico esperava, a garota executou o trabalho com perfeição. E o fascínio do rapaz estava agora dividido entre o grande piano e a garota, tão formosa e tão hábil.

Inexplicavelmente, o velho piano parecia precisar ser afinado cada vez mais freqüentemente. O que parecia não ter fundamentos, pois sempre que Nina abria o instrumento, ela apertava algumas porcas, sorria e dizia que não havia nada de errado. Francisco sempre inventava uma desculpa para chamar Nina, e esta sempre inventava algo para ir à casa dele. Não cabem aqui os pormenores dessa pequena parte de nossa história, então pulemos alguns meses para frente, mais ou menos um mês após o casamento.

A vida começou a ficar difícil. Afinal, não é e nunca foi fácil para um pianista e uma afinadora sustentar uma casa e uma família. Por um lado era bom que não tivessem filhos. Nina ia trabalhar cedo todo dia e voltava à noite. Francisco dava aulas de piano até a noite e mais tarde ia tocar em bares e restaurantes. Quando por acaso se viam, Nina cantava acompanhada por Francisco, alguma ária de Villa-Lobos ou mesmo de Mozart. E as obras começadas do agora não tão jovem músico repousavam na estante da sala de estar, ao lado do piano. O famoso piano do professor Francisco.

O professor, como passou a ser conhecido na vizinhança, era muito querido (e disputado) por seus alunos, e vice e versa. Mas embora negasse, tinha um carinho especial por uma de suas pupilas, Júlia. Por dois motivos: sua incrível e crescente habilidade com o instrumento, e por lembrar Nina, na aparência, no jeito de falar. Talvez ela fosse a filha que nunca tiveram. E nenhum outro aluno lidava com o piano como Júlia, tão precisa e delicada ao mesmo tempo.

O velho piano de Francisco e Nina com certeza contribuía para o sucesso do professor. O instrumento adquiriu fama no bairro. Fazia a razoavelmente espaçosa sala de estar da residência parecer minúscula, ostentando sua imponente cauda inteira e atraindo imediatamente o olhar dos visitantes, freqüentes ou não. Francisco se divertia um tanto com isso, mas nunca deixara de admitir que havia algo naquele piano enorme. A sensação de correr os dedos por suas antigas teclas de ébano e marfim, marcadas pelo tempo, era inexplicável, quase prazerosa, e Francisco podia ver que seus alunos sentiam o mesmo.

O piano viu o tempo passar, e viu o casal envelhecer. Francisco e Nina já pensavam na aposentadoria, mas tinham medo de discuti-la. Eram apaixonados por seus trabalhos, e Francisco tinha seus alunos. Foi então que o inesperado aconteceu. Nina resistiu ao primeiro derrame, mas não ao segundo, apenas uma semana depois. Júlia, agora com seus vinte anos, foi quem ajudou Francisco e lhe deu muito da força de que precisou para passar por essa dura fase. Francisco sofria por Nina e pelos filhos que nunca tiveram, mas seus alunos – principalmente Júlia – mais do que o apoiaram: sofreram com ele.

Em casa, o Francisco não conseguia dormir. Só lhe faziam companhia o piano e o sabiá de peito amarelo. Será que era o mesmo? Francisco logo se lembrou do canto do passarinho, e das longas noites de criação da sua juventude. Quem sabe se para amenizar sua dor, esquecer um pouco de Nina, foi à estante e apanhou uma de suas obras inacabadas.

Sentou-se ao piano, abriu a partitura e ensaiou alguns acordes. Imediatamente percebeu o quanto sentia falta de tocar por horas a fio alternando trechos de Bach, Bartok, Satie, Villa-Lobos, Gershwin e até Ellington com seus próprios. Ao dedilhar o velho teclado, percebeu também que muito do que fora sua vida girou em torno daquele instrumento: Nina, o casamento, as aulas, os alunos, Júlia... E resolveu dedicar-se novamente ao piano, à música, como havia se dedicado por tanto tempo a Nina. Terminar o que havia começado seria, talvez, uma maneira de honrar aquilo que tivera com Nina, com a própria música e com o piano.

E foi assim que novas notas voltaram a preencher os velhos pentagramas nos cadernos amarelados do velho professor. Novamente a música ecoava na casa vazia durante as madrugadas, até o sabiá cantar. Francisco dormia de manhã, reservando a tarde para seus tantos alunos. Apesar de ter cogitado se aposentar, os alunos eram agora uma parte maior da vida dele. Gostava de ensinar e gostava da companhia. E nessa rotina incomum os dias se passavam.

Muitos se passaram quando Francisco, já bastante velho, decidiu deixar tudo que tinha para Júlia: a casa, a partitura, o piano... Júlia se tornara uma grande pianista, mas nunca esquecera de seu mestre, a quem sempre agradecia antes de toda apresentação. “Agradeço ao meu professor Francisco e ao seu velho piano”, dizia ela. E sempre que podia visitava o professor, que a recebia com alegria e orgulho. Estava cada vez mais parecida com Nina.

Certo dia, Júlia resolveu fazer uma visita surpresa a Francisco, já que estava num raro período entre turnês. Como sempre era bem-vinda, bateu na porta, anunciou-se e entrou. Francisco estava no andar de cima, e não viu quando Júlia notou a partitura aberta no velho piano e sentou-se para ver o que era. Tocou as primeiras notas da melodia, e logo encadeou o acompanhamento. Francisco, que descia a escada, demorou a perceber que linda canção era aquela que Júlia interpretava ao piano.

Finalmente percebeu: era sua última obra, “Nina”. Percebeu também que nunca havia ouvido alguém tocar uma de suas músicas. O som forte, quente e um pouco desafinado do piano velho trouxe todas as lembranças de volta à sua cabeça: as madrugadas criativas, Nina, seus alunos, Júlia... O aperto que sentia no peito virou dor. Desceu mais alguns degraus, até poder ver Júlia na sala de estar, onde tocava compenetrada, mas com um sorriso no rosto. Parecia que Nina tinha voltado e alegremente dedilhava o piano.

Francisco sabia que era impossível, mas parecia ouvir a voz de Nina improvisando sobre o tema da sua canção. A dor piorou, ele levou a mão ao peito e sentou-se. Fechou os olhos, aproveitando ao máximo aquela linda melodia que vinha do velho piano. A música ia chegando ao fim, e a dor no peito do velho professor foi sumindo junto ao rallentando das últimas notas. Olhou mais uma vez para Júlia, sorriu, e deu seu último suspiro enquanto ela dava o último acorde de sua obra.

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Bom, como vocês podem ver, voltei. O texto aí em cima ficou um pouco longo, talvez um pouco confuso e eu acho que poderia ter mais a ver com o título. Também poderia melhorar a linguagem, mas não é de todo ruim. Ainda vou trabalhar nesse piano aí. Enfim, para continuar esse espírito de "começar de novo", quero que o próximo texto se chame "Cinqüenta Centavos". Essa só a Luiza entendeu.

UPDATE (12/09/05): Nada como um pouco (um pouco?) de distância cronólogica para reavaliar a própria produção literária. No caso desse texto, acho incrível como ele se encaixa no que falei aqui. Eu não gostei desse texto. Acho até chato de ler, em algumas partes. Não consegui encontrar soluções para os problemas que propus e simplesmente as tirei da cartola.

Eu sei que a pior crítica literária é aquela feita pelo próprio autor, então não vou dizer que o texto está ruim, mas sim que poderia estar muito melhor. Tudo o que peço é que não me julguem por ele.

quarta-feira, julho 21, 2004

A Partida de Xadrez



Um rei barbudo chamado Grauwacke olhva satisfeito para seu pequeno reino do alto de uma torre de seu castelo. Um sorriso desalinhado surgiu por entre os pêlos.

Longe dali, já longe dali, a esposa de Grauwacke era raptada relativamente contra sua vontade por um cavaleiro encapuzado de mãos fortes e decididas.

O rei constatou que sua amada não estava no castelo após encontrar seu leito intacto àquela hora da noite e envolver dezenas de pessoas numa detalhada busca pelo castelo e pelos arredores. Mas já era tarde.

Uma semana após o sumiço da rainha, Grauwacke recebeu uma mensagem do reino vizinho. Foi com horror e tristeza que o rei leu:"Sua rainha serve agora ao rei Jánus."

Em seu desespero, o rei buscou o auxílio e o conselho dos dois bispos de seu reino.
- Vá atrás dela - disse-lhe um deles.
- Se não pelo seu amor, pela integridade de seu reino. Se necessário, iremos também!

Ciente das limitações de seu reino em termos de capacidade bélica mas confiante por saber estar em pé de igualdade com o reino de Jánus, Grauwacke reuniu oito soldados, dois cavaleiros, duas torres de guerra e os dois bispos e partiu em busca de sua esposa.

No castelo de Jánus, a prisioneira circulava livremente pelos aposentos reais, enquanto a rainha que originalmente ocupara aquela cama exilava-se num quarto escuro. O reino todo estava em polvorosa e os habitantes, cientes da traição do rei e já descontentes com a sua usual tirania, calaram-se e abaixaram as cabeças quando a comitiva de Grauwacke atravessou seus vilarejos.

Já era praticamente tarde demais quando o castelo de Jánus foi tomado. Seus soldados e cavaleiros, pregos de surpresa, resistiram bravamente e mataram seis soldados de Grauwacke, um de seus cavaleiros e um dos bispos antes de sucumbirem. As torres de guerra de ambos os lados foram destruídas na terrível batalha.

O bispo que sobrevivera mostrou-se bastante abalado com a morte do amigo. Percebendo isso, Grauwacke ordenou ao último de seus cavaleiros e aos dois soldados que encontrassem e executassem os dois bispos do reino de Jánus. Grauwacke e o bispo subiram aos aposentos reais. No meio da larga escadaria, entraram por uma porta que dava no comodo em que se encontrava a exilada esposa de Jánus. Deprimida e mal-alimentada, obivamente a mando do rei que provavelmente a mantivera viva por causa de algum amor remanescente ou só pela diversão de vê-la definhar aos poucos, a rainha acuava-se como um bicho e chorava compulsivamente. Por pena ou vingança, Grauwacke matou-a com um golpe de espada, não sem antes permitir que o bispo lhe desse a extrema unção.

Nos aposentos reais, Grauwacke encontrou sua esposa. Pegou-a nos braços e com ela retornou ao seu reino após encontrar-se com o cavaleiro e os soldados que haviam cuprido sua tarefa de assassinar os bispos locais. A única lacuna havia sido não encontrar Jánus, mas Grauwacke tomou-o por covarde e convenceu-se de que a destruição de seu exército e a morte dos bispos e da sua esposa seria vingança suficiente.

Jánus escondera-se num cômodo secreto de seu castelo. Quando de lá saiu e viu sua morada devastada e sua esposa morta, Jánus equipou-se e saiu à busca de Grauwacke e do que restara da comitiva. Ia rapidamente e por atalhos e, portanto, pegou-os desprevenidos numa curva da estrada. Cheio de fúria e determinação, livrou-se dos soldados com dois golpes certeiros. O bispo foi jogado para fora de seu transporte e morto logo em seguida. Enquanto Grauwacke fugia com a rainha, o cavaleiro lutou bravamente com Jánus, mas uma falha sua fez com que o rei vencesse a batalha, degolando o oponente e voltando a perseguir Grauwacke. Em poucos minutos Jánus o encurralava num remanso da estrada. Com um golpe rápido, vingou a morte de sua rainha e viu com prazer a esposa de Grauwacke, com os olhos muito abertos, cair morta sobre a terra. Estava muito escuro.

- Agora é entre nós - disse Jánus, seus olhos brilhando alucinadamente no escuro.

Desmontados, os dois reis fitavam-se anonimamente com as espadas desembainhadas, acuando-se mutuamente como dois lobos que conhecem a força do inimigo. Embora procurassem não revelar seu medo ao oponente, ambos temiam, no fundo, que qualquer investida mais ousada pudesse significar a morte. Esta dança se manteve por horas a fio. O sol subiu ao céu e lá continuavam eles, encarando-se atentamente. E assim ficariam eternamente se não tivéssemos decidido parar com essa bobagem e ir logo tomar um café.

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Aí em cima está a primeira versão de um texto no qual eu ainda pretendo trabalhar bastante. Eu gostaria de ter colocado aqui a versão final dele, do jeito como eu sei que ele pode ficar. Mas foi isso mesmo que saiu e por enquanto é o que temos.

E o próximo texto deve se chamar "Piano Velho".

domingo, julho 18, 2004

A Saga do Bibliotecário


O Bibliotecário - Giuseppe Arcimboldo
Óleo sobre tela - 1566

Era um bom homem, o bibliotecário. E bom profissional. Era visível que havia nascido para os livros: desde pequeno um bom leitor. Na sua juventude devorara os clássicos e mal podia esperar para entrar na faculdade. Obviamente, Letras. No entanto, após concluir a graduação (e de ler dezenas de obras no processo), o rapaz percebeu que sua vida não era as Letras, e sim os livros em si. Queria viver entre eles. E lá se foi, para o curso de graduação em Biblioteconomia, onde achou que encontraria a porta para essa vida que queria. De fato, encontrou.

Com sua formação, mais do que completa, não teve dificuldades para encontrar um emprego. Revelou-se um hábil bibliotecário, mesmo sem nunca parar de ler. E não demorou que subisse na vida: do colégio de educação infantil da esquina da sua rua, foi para um colégio estadual. De lá, foi convidado a organizar a biblioteca da faculdade de Letras onde havia estudado. Após breve passagem por dois grandes colégios particulares, voltou para a universidade onde gerenciava a biblioteca geral. Foi então que chamaram-no para o emprego no qual o homem, agora já em seus quarenta anos, achava que ia terminar sua carreira.

Gerente de informação do Acervo Nacional. Era, provavelmente, o posto máximo em que um graduado em biblioteconomia poderia chegar. E em sua bagagem literária já carregava algumas centenas de livros, de todos os tipos, línguas e autores. Estava satisfeito com sua vida, e — notem — não tinha mulher nem filhos. Não tinha tempo para isso. E continuou, o bibliotecário, a organizar e ler, organizar e ler... Assiduamente, como se não houvesse outras coisas para fazer. Não sabia, o coitado, que sua história estava prestes a mudar.

Numa manhã de junho, muito fria, um velho senhor entrou no Acervo Nacional e pediu um momento com o gerente. O bibliotecário, bom homem que era, gentilmente abriu mão de alguns preciosos minutos do seu tempo para atender o senhor. Acontece que ele trabalhava para um homem muito importante, que possuía nada menos que a maior biblioteca do mundo. E, como seu último bibliotecário morrera, o homem precisava substituí-lo. “É uma ótima oferta”, disse o senhor, “e meu patrão quer o melhor para fazer o trabalho.” O bibliotecário, após considerações sobre salário e carga-horária, aceitou. Afinal, para um bibliotecário como ele, que orgulho maior haveria do que organizar a maior biblioteca do mundo?

No começo, ele trabalhava calmamente e tirava um bom tempo para ler as obras que organizava. Todavia, o desespero começou a aparecer pois após toda estante que catalogava e organizava, havia outra, e após esta, outra. E havia outras salas, e salões, e porões todos cheios de livros, organizados de forma antiquada e muitas vezes desordenada. Gradualmente, o bibliotecário parou de ler. Não percebeu quando passou a primeira noite na biblioteca, não percebeu que — mais tarde — passava todas as noites lá. O homem agora fizera da biblioteca sua vida e seu lar.

Anos se passaram enquanto o bibliotecário catalogava e organizava as infindáveis obras da grande biblioteca. Isolado do mundo, ele transformara sua paixão em uma tarefa automática, e mesmo assim ainda faltava muito para terminar. Décadas se esvaíram até que ele chegou à última sala. Como já estava idoso, demorou um pouco mais que as outras. E finalmente! Abriu o último livro, leu a ultima primeira página, escreveu a última ficha. Foi a excitação de colocar o último livro na prateleira que o matou. Morreu feliz, o bibliotecário.

Não sabia, no entanto, que naquela biblioteca estavam guardadas todas as informações do mundo. E durante seu trabalho, o mundo havia mudado. Não é surpresa para nós, então, que o dono da biblioteca — ao adentrá-la e vê-la organizada de forma tão antiquada — requisitasse um novo bibliotecário para consertar o que o antigo havia feito. E tinha de ser o melhor.

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O próximo texto deverá se chamar "A Partida de Xadrez".

quinta-feira, julho 15, 2004

O Japonês


Aldemir Martins


Thiago havia acabado de levar um pé de sua namorada, companheira de muitos anos. Estava lá, sentado numa poltrona torta da sala da casa dele, agora meio vazia por causa da parcela daquilo que compartilhavam que havia sido por ela levado. E era exatamente assim que ele se sentia por dentro.

Depois de alguns minutos (talvez muitos) de perplexidade estática, durante os quais Thiago reviveu os momentos finais, em que ela trancara a porta da frente depois de lançar-lhe um olhar sem sentido, ou cujo sentido ele não podia compreender, levantou-se quase inconscientemente e foi caminhando pela casa. A cozinha também estava vazia. O banheiro era insuportável de tão vazio. O quarto era uma planície erma. Até o quintal, cheio de plantas e atravessado por um varal meio cheio, era vazio. Chegava a ser estúpido.

Naquela noite, Thiago não conseguia dormir. Mas não estava inquieto, nem triste, nem nada. Não conseguia nomear o que sentia, mas algo dentro dele o incomodava insistentemente, quase sutilmente. Estava vazio.

Foi só na manhã seguinte, após horas e horas de insônia, que Thiago chegou a uma conclusão racionalmente aceitável de por que se sentia tão oco: ele precisava de algo que se movesse voluntariamente dentro daquela casa. Algo que emitisse sons, fosse visível, tivesse um mínimo de vontade própria. Ele olhou ao redor e gavetas encaravam-no com um ar opressor. Ele havia se dado conta de que sentia menos falta de sua namorada do que da presença física dela. Lembrou-se de ocasiões em que sentia-se tão satisfeito ao ouvir a voz de sua amada, e constatou pela primeira vez que o que ela dizia não era importante; apenas o som de sua voz lhe bastava. Por isso as reclamações dela, por isso a total falta de habilidade dele em compreendê-las. Ela dizia que ele não a entendia. Mas ele, à sua maneira, a compreendia totalmente: ela era a voz na cozinha, o corpo quente na cama, a mão no ombro, a cantoria no quintal, e era o bastante. Para ele isso era o amor.

Passado o susto inicial devido à constatação de algo tão humanamente deplorável, Thiago tomou algumas horas de seu dia para filosofar acerca da natureza do amor. Chegou obviamente a conclusão nenhuma e decidiu que o melhor era ser pragmático: ele precisava de algo que se movesse dentro da casa. De algo que emitisse sons. De algo com vontade própria.

Ele precisava de um gato.

Mais tarde naquele mesmo dia, Thiago se dirigiu a uma casa de adoção de animais que existia perto de sua casa. O dono, um japonês velhinho e simpático, com uma risada contida e por isso engraçada, levou-o a uma pequena salinha na qual moravam os bichanos. Todos vacinados e limpinhos, garantia o japonês, e Thiago passava os olhos pelas jaulinhas a procura de algo que lhe chamasse a atenção. Viu então, junto de três outros gatos sem-graça, um lindo felino de pêlo cinza e olhos azuis. Tinha cara de ser uma boa companhia. Não estava miando histericamente, não estava pulando na jaulinha, estava sossegado. Quase blasé. Piscava devagarinho e parecia analisar a situação, acima de todos os outros bichos. Sim! Os outros eram todos bichos. Ele, sim, era um animal que merecia consideração. Dez minutos depois, Thiago saia do local com o gato, que já ganhara um nome adequado: Blasé, como não poderia deixar de ser.

O primeiro dia foi uma harmonia eufórica. Apesar de não ter dormido aquela noite, Thiago divertia-se com seu novo amigo. Coçava-lhe a barriga, ouvia satisfeito seu ronronar, assoprava suas orelhas, apertava-lhe as almofadinhas das patas para ver suas unhas, amarrava uma porcaria colorida num fio dental e saía correndo pela casa só para ver Blasé correr atrás, elegantemente, e lançar-se no ar, e confundir-se, e dar meia volta, e miar engraçado, e preparar-se para dar o bote, e atacar a porcaria colorida com precisão. A casa estava cheia de vida novamente e a noite chegou antes que Thiago pudesse se dar conta disso.

Com a cabeça bem-encaixada no travesseiro e o corpo devidamente coberto por um edredon pesado - ah, Thiago adorava os edredons pesados! -, ele não demorou mais do que cinco minutos para pegar no sono. E logo vieram os sonhos.

Thiago andava por uma rua azul de contornos flácidos. Os prédios pareciam que iam explodir a qualquer instante pois encontravam-se inflados, como se, de dentro deles, fosse jorrar um líquido gelatinoso. Roxo, provavelmente. A rua estava vazia e ouvia-se um realejo tocar ao longe. As nuvens emolduravam estranhamente um sol flácido. Thiago metia as mãos nos bolsos e andava no ritmo da música, assobiando junto. Surgia, então, uma figura ao longe. O som do realejo esvaía-se aos poucos e ouvia-se uma risada contida. Mas era só uma silhueta, e Thiago se aproximava cada vez mais e ainda só uma silhueta, os prédios moviam-se gelatinosamente, cada vez mais rápido, a risadinha começava a ecoar e Thiago já não tinha as mãos nos bolsos e corria em direção à figura, e quando estava perto, muito perto, a silhueta se transformava no rosto desfigurado e cinza do japonês que lhe dera o gato, e que parecia ser mais flácido do que todo o resto, e seus lábios moviam-se ritmadamente à medida que a risada ficava mais e mais alta, e Thiago não podia se mover e o espetáculo se desenrolava por eras.

Thiago acorda assustado, abre os olhos e lá está o gato. Em cima de seu peito, com as patinhas macias sobre seu edredon pesado, estático, olhando o dono nos olhos. Thiago mal respira, até que Blasé solta um miado engraçadinho, curto, quase que amigavelmente sarcástico. O susto havia passado.

Thiago passou a mão pelas costas do gato e, tirando-o delicadamente de cima da cama, levantou-se e foi comer alguma coisa. Já era quase de manhã, afinal. Durante o desjejum, Thiago ria-se por dentro ao lembrar de seu sonho absurdo, e divertia-se com a presença quase humana do gato na cadeira logo em frente - via-se apenas uma cabecinha por trás da mesa.

O dia foi novamente uma alegria. Thiago sentou-se no quintal e se deleitou com a visão de seu amigo peludo pulando para alcançar uma borboleta azul. Leu um livro com Blasé enrolado em sua barriga. Dividiu seu almoço com Blasé. Viu TV com Blasé ao lado e se impressionou com quão atento ele parecia estar à programação. Dividiu seu jantar com Blasé. Saiu do banho de cuecas com a escova de cabelo na mão e realizou uma incrível performance de uma música do Elvis sob o olhar curioso de Blasé. Coçou-lhe o pescoço longamente antes de dormir e, com o gato ao seu lado, na cama, foi aos poucos adormecendo, ouvindo o doce som de seu ronronar.

E lá estava ele novamente na rua azul. Os prédios flácidos o cercavam. Tudo se repetia, só que muito mais lentamente. Seus passos eram mais lentos, o sol parecia estar mais lentamente emoldurado pelas nuvens, o realejo tocava lentamente e os lábios grotescos do japonês moviam-se, insuportáveis, muito lentamente, por um período muito maior do que anteriormente, e seu sofrimento agora era lento, era progressivo, era constante e palpável.

Olhos abertos e lá estava ele novamente, estático, desta vez ainda mais próximo de seu rosto, emitindo um miado um tanto quanto insolente após longos segundos de contemplação mútua.

Thiago teria novamente agradado Blasé e desconsiderado o sonho agora recorrente se a insolência de seu miado não o incomodasse tanto. O dia foi estranho. Ele olhava desconfiado para o bicho, que lhe devolvia um olhar superior e despreocupado. Thiago jogava de longe uma bolinha, Blasé acompanhava seus movimentos com seus olhos profundos e depois olhava para o dono. Firmemente. O tempo passou pesado.

Naquela noite, Thiago voltou a sonhar com o japonês desfigurado, e novamente estava Blasé em seu colo no momento em que acordou. Noite após noite isso se repetiu. O sonho cada vez mais lento e Blasé demorando cada vez mais para miar, e cada vez mais insolência em seu miado. Thiago sentia-se cada vez mais preso entre sua cama e o gato. Aquela situação o afligia, daquela forma não era possível. Ele precisava se livrar daquilo, e rápido. Noites e noites sem dormir o levaram a engendrar seu plano.

Thiago afagou Blasé aquela noite com os olhos vidrados.

No dia seguinte, todo o bairro recebeu aterrorizado a notícia de que o senhor Yamashiro havia sido brutalmente assassinado durante a noite a golpes de pé-de-cabra.

Thiago e Blasé dividiam o jantar quando as sirenes se aproximaram.

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O próximo texto deve se chamar "A Saga do Bibliotecário".

Do blog, seus integrantes e o passado destes

Olá.

Este é o primeiro post desse novo blog, mas ironicamente fugirá da proposta básica. Isto é porque para nossos caros leitores entenderem os posts do nosso humilde blog, a tal "proposta básica" deve ser explicada.

Porém, antes disso, devo me apresentar. Sou Ivan Zurawski. O resto das informações inúteis (idade, sexo, etc.) pode ser visualizado com um clique no meu perfil ali à direita. Aproveitem e vejam o perfil da minha célebre colega Luiza Gianesella também. Vamos ao útil.

Após uma experiência muito boa, o Disúria e Distúrbios Disentéricos (não, essas não são as experiências boas; refiro-me ao blog), desisti da vida blogueira enquanto a Luiza seguiu sua carreira tornando-se famosa. Hoje nos juntamos novamente para escrever isso aqui. O blog dela, aliás, é o primeiro dos links ali do lado. Dêem uma olhada.

A proposta. Como diz a pequena descrição da nossa cousa, eis aqui um blog em que um ser propõe um título a ser preenchido pelo outro ser. Eu sou um ser e a Luiza é o outro. Pronto. Agora, eu poderia ter postado só esse último parágrafo e poupado vocês dessa baboseira toda desse post. Mas agora já foi.

Enfim; explicada a proposta, desejo a todos uma boa sorte ao ler nossos textos. Desejem boa sorte a mim para escrevê-los, por gentileza. Quanto ao Schfrütz do nosso nome, não vou explicar agora. Com sorte mais para frente isso será esclarecido.

E, para inaugurar o Blog, eu peço à minha colega para elaborar um texto com o título "O Japonês".