Cousa: Schfrütz

Eis aqui um blog em que um ser propõe um título a ser preenchido pelo outro ser.

domingo, julho 18, 2004

A Saga do Bibliotecário


O Bibliotecário - Giuseppe Arcimboldo
Óleo sobre tela - 1566

Era um bom homem, o bibliotecário. E bom profissional. Era visível que havia nascido para os livros: desde pequeno um bom leitor. Na sua juventude devorara os clássicos e mal podia esperar para entrar na faculdade. Obviamente, Letras. No entanto, após concluir a graduação (e de ler dezenas de obras no processo), o rapaz percebeu que sua vida não era as Letras, e sim os livros em si. Queria viver entre eles. E lá se foi, para o curso de graduação em Biblioteconomia, onde achou que encontraria a porta para essa vida que queria. De fato, encontrou.

Com sua formação, mais do que completa, não teve dificuldades para encontrar um emprego. Revelou-se um hábil bibliotecário, mesmo sem nunca parar de ler. E não demorou que subisse na vida: do colégio de educação infantil da esquina da sua rua, foi para um colégio estadual. De lá, foi convidado a organizar a biblioteca da faculdade de Letras onde havia estudado. Após breve passagem por dois grandes colégios particulares, voltou para a universidade onde gerenciava a biblioteca geral. Foi então que chamaram-no para o emprego no qual o homem, agora já em seus quarenta anos, achava que ia terminar sua carreira.

Gerente de informação do Acervo Nacional. Era, provavelmente, o posto máximo em que um graduado em biblioteconomia poderia chegar. E em sua bagagem literária já carregava algumas centenas de livros, de todos os tipos, línguas e autores. Estava satisfeito com sua vida, e — notem — não tinha mulher nem filhos. Não tinha tempo para isso. E continuou, o bibliotecário, a organizar e ler, organizar e ler... Assiduamente, como se não houvesse outras coisas para fazer. Não sabia, o coitado, que sua história estava prestes a mudar.

Numa manhã de junho, muito fria, um velho senhor entrou no Acervo Nacional e pediu um momento com o gerente. O bibliotecário, bom homem que era, gentilmente abriu mão de alguns preciosos minutos do seu tempo para atender o senhor. Acontece que ele trabalhava para um homem muito importante, que possuía nada menos que a maior biblioteca do mundo. E, como seu último bibliotecário morrera, o homem precisava substituí-lo. “É uma ótima oferta”, disse o senhor, “e meu patrão quer o melhor para fazer o trabalho.” O bibliotecário, após considerações sobre salário e carga-horária, aceitou. Afinal, para um bibliotecário como ele, que orgulho maior haveria do que organizar a maior biblioteca do mundo?

No começo, ele trabalhava calmamente e tirava um bom tempo para ler as obras que organizava. Todavia, o desespero começou a aparecer pois após toda estante que catalogava e organizava, havia outra, e após esta, outra. E havia outras salas, e salões, e porões todos cheios de livros, organizados de forma antiquada e muitas vezes desordenada. Gradualmente, o bibliotecário parou de ler. Não percebeu quando passou a primeira noite na biblioteca, não percebeu que — mais tarde — passava todas as noites lá. O homem agora fizera da biblioteca sua vida e seu lar.

Anos se passaram enquanto o bibliotecário catalogava e organizava as infindáveis obras da grande biblioteca. Isolado do mundo, ele transformara sua paixão em uma tarefa automática, e mesmo assim ainda faltava muito para terminar. Décadas se esvaíram até que ele chegou à última sala. Como já estava idoso, demorou um pouco mais que as outras. E finalmente! Abriu o último livro, leu a ultima primeira página, escreveu a última ficha. Foi a excitação de colocar o último livro na prateleira que o matou. Morreu feliz, o bibliotecário.

Não sabia, no entanto, que naquela biblioteca estavam guardadas todas as informações do mundo. E durante seu trabalho, o mundo havia mudado. Não é surpresa para nós, então, que o dono da biblioteca — ao adentrá-la e vê-la organizada de forma tão antiquada — requisitasse um novo bibliotecário para consertar o que o antigo havia feito. E tinha de ser o melhor.

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O próximo texto deverá se chamar "A Partida de Xadrez".

2 Comments:

  • At 4:51 PM, Blogger Luiza Gianesella said…

    Zu, adorei! Minha mãe também.

    Mãe: "Se o moto-perpétuo não é uma expressão possível no campo das verdades científicas, o é efetivamente no campo das verdades literárias. Parabéns!"

     
  • At 11:45 PM, Blogger dipnlik said…

    Um triste fim para o bibliotecário mas uma bela história. Tem tarefas que realmente ocupam tanto tempo que nem temos vontade de fazê-las, e quando nos dispomos a elas, no final o começo precisa ser refeito. Por vezes não sei resolver este dilema e isto explica em partes porque meu quarto continua bagunçado.

     

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